A sinfonia inacabada de Gorécki (que o filho terminou)
Texto: NUNO GALOPIM
Ouvi falar desta obra pela primeira vez há uns três anos, por ocasião de um almoço em Varsóvia com Gregorz Michalski, presidente da Sociedade Witold Lutoslawski e amigo pessoal de Henryk Górecki (1933-2010). Havia uma quarta sinfonia! E para quem, como eu, tem a Sinfonia Nº 3 deste compositor polaco como uma das mais belas peças orquestrais do final do século XX, esta era, no mínimo, uma deliciosa revelação. Tinha ficado inacabada, deixada pela morte de Gorecki apenas numa versão para piano que tinha tocado para os amigos, cantando ele mesmo a linha melódica e comentando o que estavam a ouvir.
O filho do autor da obra, Mikolaj, também ele compositor, partiu do material e indicações que o pai deixara e completou a orquestração, permitindo assim que, postumamente, possamos agora escutar o que seria a Sinfonia Nª 4 de Górecki (com a devida ressalva de que a sua visão para o que seria a obra foi apenas relatada, o que agora encontramos tendo resultado de um trabalho de inferência por parte de alguém que conhecia bem o pai e a sua música).
A estreia mundial foi então marcada para ter lugar no Royal Festival Hall, em Londres, sendo assim entregue a primeira apresentação pública desta obra à London Philharmonic Orchestra, sob direção de Andrei Boreyko, e contando com o violinista Julian Rachlin como solista. A escolha do lugar resultou do simples facto de esta sinfonia ter sido resultado de uma encomenda da própria London Philharmonic Orchestra e do Southbank Centre londrino, com apoio do Instituto Adam Mickiewicz Institute, a Los Angeles Philharmonic Association e a Zaterdag Matinee, de Amsterdão.
Com o subtítulo Tansman Episodes (numa referencia a Alexandre Tansman, um outro compositor polaco, durante muito tempo algo esquecido), a Sinfonia Nº 4 de Gorécki, nesta visão concluída pelo filho, não representa exatamente uma continuação do que mostrou na Sinfonia Nº 3 que, depois de estreada em 1977 sob violenta crítica e um “merde” enunciado por Pierre Boulez, se tornaria numa das mais célebres obras do século XX pelo sucesso de uma gravação pela London Sinfonietta, com a voz de Dawn Upshaw, lançada pela Nonesuch em inícios dos anos 90 (e que agora surge em vinil).
Há ainda marcas de repetição e passagens de cortante melancolia (sobretudo no terceiro andamento, que termina com um surto de fulgor Shostakovichiano). Mas há um outro viço no corpo da obra e uma vontade em explorar contrastes, recuperando até algum relacionamento com momentos de maior intensidade que podemos recordar de obras anteriores à Sinfonia Nº 3 e um interesse na exploração dos contrastes abruptos entre um som grandioso e as periferias do silêncio.
Apesar das referências à redescoberta de um interesse por Wagner que Górecki terá sentido no final da sua vida, há nesta sua quarta sinfonia mais instantes que traduzem um afinidades possíveis com duas outras bem distintas linguagens sinfónicas do século XX, do já citado Shostakovich ao fulgor repetitivo da fase minimalista da obra de John Adams (como se escuta no quarto andamento).
Seria mesmo assim que Gorécki imaginava a sua Sinfonia Nº 4? Não sabemos. Esta é uma leitura possível, plena de heranças e de olhares lançados noutras direções. E por muito interessantes que sejm as revelações (e a própria música), há que ter sempre presente aqui o filtro que separa o que nos deixou o compositor e o que o filho ali juntou. Não seria má ideia, um destes dias, termos em disco a gravação da partitura para piano que deixou e que, assim, foi matéria prima da qual esta obra de pai e filho acabou por nascer.
Henryk Gorécki
“Sinfonia Nº 4” (versão concluída pelo filho Mikolaj Gorécki)
CD Nonesuch
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