A lei do ódio e da vingança
Texto: RUI ALVES DE SOUSA
Depois de um último filme que desiludiu muitos – o primeiro western (ou como Tarantino o intitula, eastern), Django Libertado, espalhafatoso e incongruente – o realizador de Pulp Fiction e Jackie Brown está de volta com um filme completamente diferente, mas que em certa medida, tem semelhanças com todas as suas histórias anteriores. Há mortes, enganos, violência, mais violência, e vingança… que gera mais violência. É Tarantino no seu melhor, e mais em forma do que em algumas últimas obras dececionantes.
A vingança, essa, é um prato que se serve frio, e nas terras geladas do Wyoming, não é exceção. Uma diligência leva um caçador de recompensas (Kurt Russell) e o seu “prémio” (Jennifer Jason Leigh), mais um major duvidoso (Samuel L. Jackson) e o futuro xerife de uma pequena cidade (Walton Goggins) numa viagem que terá de ser interrompida, para descanso, numa estalagem. A estas quatro personagens, lá se juntarão outras tantas. Aos poucos, vamos conhecendo cada uma delas. Há segredos no ar, mentiras por resolver, numa narrativa que deve tanto ao cinema como ao teatro.
Não é por acaso que Os Oito Odiados seja o filme mais teatral de Tarantino (mais até que Cães Danados), e aqui, o “palco” serve para exorcizar demónios: desde tensões raciais (e as sangrentas ambições do major) até ao conflito entre o norte e o sul, bem presente na época em que o filme se situa, são apenas duas das facetas com que os diálogos ajudam a criar pequenas e grandes barreiras, e a criar aliados e inimigos. Ou será tudo uma subtil ilusão? Caberá ao espectador descobrir, e divertir-se com os valentes exageros e “abusos” de Tarantino: sangue e tripas pelo ar, momentos de conversa aparentemente inconsequentes, e uma maravilhosa química entre os atores, provavelmente o melhor elenco que o cineasta conseguiu reunir num dos seus filmes (e Samuel L. Jackson tem aqui o seu papel mais mortífero, surpreendente e escandaloso – em sequências tão memoráveis como as que o tornaram numa figura célebre do universo tarantinesco, como a do “Mac Royale com queijo”, da famosa discussão com Travolta em Pulp Fiction).
Falou-se muito das influências que Tarantino foi buscar para este western, sendo as duas primordiais Veio do Outro Mundo, de Carpenter, e o seu próprio primeiro filme. Mas se nos abstrairmos dos factos e das dissecações da opinião pública, conseguimos perceber que, aparte a força dessas referências, temos aqui um universo bem original, que vive de uma narrativa insólita e que não caminha pelo que seria mais previsível. Tarantino percebeu os erros que cometeu com Django – uma história mal construída, assente mais na imposição constante de referências do que na originalidade do realizador, e o arrastar da narrativa até aos limites.
Até poderia ser expectável que Os Oito Odiados pudesse tomar proporções ainda mais dramáticas nestes aspetos (porque é um projeto bem mais megalómano do que o anterior), mas parece que aqui tudo bate certo. Os artifícios cénicos e dramáticos dão mais densidade à história e à proximidade do espectador a estas estranhas figuras, e a crítica social é ainda mais acertada. Ao contrário desse seu filme anterior, aqui as marcas populares e culturais não tomam o papel principal e não danificam o que há de mais puro e cinematográfico: as personagens e a constante fluidez do discurso brutalmente sarcástico do filme.
A demanda de Tarantino pela película deu aqui os seus frutos: Os Oito Odiados é visualmente belíssimo, com uma montagem impecável e uma perfeita execução de cada sequência e da construção das personagens. O cineasta pop da geração dos noventas é dos poucos que quer preservar as “antiguidades” do cinema, aquelas que nada dizem à malta nova, mas cuja (re)descoberta nunca foi tão urgente como na atualidade. Se falarmos de bom cinema-espectáculo, é inegável que só o realizador parece ser o único que continua a conseguir concretizá-lo, sem cair nas armadilhas das tecnologias modernas. E pela primeira vez, conseguiu ter Ennio Morricone a compor para si (mas a banda sonora não é 100% original, “roubando” algumas peças do filme de Carpenter) e a criar um ambiente sonoro que encaixa perfeitamente – há muito tempo que Tarantino não tinha a música num filme “só porque sim”. Existe, em vez disso, uma ligação exemplar entre o poder das imagens e o das notas de Morricone.
Este é o seu filme mais ambicioso de sempre, e que se vê com um enorme deleite. Vale a pena voltar à sala uma outra vez: o espetáculo de Tarantino merece mesmo ser contemplado nas condições que o próprio idealizou. Por cá não teremos projeções em 70 nem em 35 milímetros. Ficamos apenas por cópias digitais que, ao menos, não deixam perder nada das texturas originais da fotografia do filme.
The Hateful Eight
Realizador: Quentin Tarantino
Elenco: Samuel L. Jackson, Kurt Russell, Jennifer Jason Leigh, Walton Goggins, Demián Bichir, Tim Roth, Michael Madsen, Bruce Dern
Distribuidora: Pris Audiovisuais
★★★★

Os Oito Odiados é mais um conto confiante do um dos melhores contadores de histórias actuais: Quentin Tarantino. Com música original de um mestre em grande forma, Ennio Morricone, oferece-nos um grand guinol niilista que subverte o uso do ecrã panorâmico e do formato de 70mm para filmar uma peça de câmara que substitui as esperadas paisagens e vistas por um caldeirão de tensões raciais e onde o horror da violência se sobrepõe a qualquer questão de género ou raça. Uma obra-prima.
António Araújo
Mais no próximo episódio do Segundo Take em http://www.segundotake.com
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