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Porque ainda há muros a derrubar…

Texto: NUNO GALOPIM

Numa altura em que um dos candidatos à presidência dos EUA fala em levantar muros, o filme da mais recente digressão de Roger Waters lembra como é importante saber derrubá-los.

Quando o projeto nasceu em finais dos anos 70, abrindo caminho a um novo álbum dos Pink Floyd, tinha como fundo conceptual uma história de alienação pessoal, o isolamento a que o muro aludia sendo assim uma barreira entre o eu e os outros… E a figura protagonista não deixava de traduzir ecos da memória de Syd Barrett, a alma fundadora da banda que tinha sido já evocada no álbum Wish You Were Here, de 1976. O tempo daria a The Wall uma dimensão menos abstracta e mais política quando, em 1990, Roger Waters, há já muito afastado dos Pink Floyd, reencenou o disco, de fio a pavio, num concerto histórico com palco no coração de Berlim, entre as Portas de Brandenburgo e Potsdamer Platz, onde meses antes um muro (real) divida a cidade. Com o tempo, esse e outros muros ganharam nestas canções uma banda sonora de referência (e Roger Waters nunca deixou de usar este mesmo acervo criativo em favor de um discurso político, como por exemplo fez junto a um outro muro, em solo israelita). Por isso, quando voltou a tomar estas canções originalmente editadas no álbum The Wall, de 1979, para as devolver ao palco numa digressão de 219 datas (que passou por Lisboa, em duas noites, em março de 2011), Roger Waters juntou o dois em um. Ou seja, a herança natural de The Wall, e todos os sentidos que, com os anos, estas canções acabaram por traduzir como expressão de um comportamento entre povos que preferem resolver com muros problemas que, na verdade, não acabam quando há paredes a separar depois cada metade que assim acabou dividida. Com a promessa de um muro na fronteira mexicana lançada por Donald Trump, está visto que nada disto deixou de fazer sentido.

Apesar de nascidas como um corpo feito de sons, as canções de The Wall cedo chamaram a si uma fortíssima relação com as imagens. Desde logo o packaging do álbum incluía desenhos de Gerald Scarfe, que definiram as linhas angulosas e incómodas das personagens que ganhariam forma na digressão de 31 datas entre 1980 e 81 que seguiu ao lançamento do disco e, logo depois, no filme de Alan Parker baseado nestas canções que teve Bob Geldof no papel do protagonista, Pink.

Depois da histórica atuação em Berlim, e apesar do álbum entretanto já inscrito na galeria dos clássicos maiores da história da música popular (aclamado nas opiniões e igualmente firme no departamento das vendas), The Wall tornou-se com o tempo numa relíquia para saborear pela memória ou nas sucessivas reedições (tanto do registo de estúdio como da gravação de palco durante a digressão original). Até que, em 2010, Roger Waters concebeu uma reconstrução da ideia cénica original, usando as novas tecnologias de geração de imagens e as potencialidades cénicas das ferramentas que os palcos podem ter no século XXI para devolver à vida The Wall. Com as mesmas canções. Mas com um aparato que, mesmo firme numa iconografia histórica, permitia uma experiência de palco nova e avassaladora. Assim foi.

Roger Waters: The Wall, é agora o documento desta experiência de reencontro das canções do álbum de 1979 com os palcos do século XXI. Apesar de ser na essência um filme-concerto, que cruza imagens captadas numa semana de ensaios e concerto numa arena fechada, com outras, registadas numa das atuações ao ar livre, num estádio da América Latina, é na verdade mais do que apenas um registo bem filmado (e muito bem montado) de uma digressão de grande aparato cénico. A noção de perda (e de morte), que estão na origem da construção da própria personagem de Pink, tem aqui materialidade nas romagens que Waters faz aos cemitérios de guerra onde repousam os corpos do seu avô e pai, mortos respetivamente na primeira e segunda guerras mundiais. Faz-se acompanhar pelo filho e netos numa dela, aprofundando o plano pessoal que o filme assim acrescenta aos sentidos mais abstractos e políticos que, ao longo dos anos, tomaram conta destas canções. Esta presença de imagens fora do palco, que se estendem a planos numa grande casa vazia ou em segmentos de estrada em conversa com amigos, reforçam a ligação entre o criador da obra e os sentidos que nela projetou e, anos depois, ainda dela pode extrair.

“Roger Waters: The Wall”, de Roger Waters e Sean Evans, está editado em DVD e Blu-ray pela NOS.

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