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Os filmes da Monstra 2016

Textos de DIOGO SENO e RUI ALVES DE SOUSA

Acompanhámos várias sessões do festival. Aqui fica um percurso por alguns dos filmes mais marcantes que vimos nesta edição da Monstra.

“Rapaz Fantasma”, de Alain Gagnol & Jean-Loup Felicioli
por DIOGO SENO

Este filme de animação francesa (da mesma dupla de realizadores de Une vie de chat, nomeado para Oscar de Melhor Filme de Animação em 2010) apresenta um estilo muito próximo das ilustrações dos livros infantis contemporâneos – linhas tortas, figuras simplificadas, cenários expressivos, cores sonhadoras – com algumas inspirações da pintura, por exemplo do cubismo (o vilão, com a sua cara angulosa de diferentes cores, lembra, por exemplo, certas figuras de Picasso). Um estilo rico, diferente (que recorre, embora moderamente, a animação digital) para contar uma história claramente direccionada aos mais novos que no entanto encontra uma veia poética e dramática incomum em filmes de animação.

Trata-se da história de um menino que se encontra no hospital para fazer quimioterapia, e que tem o poder de sair fora do seu corpo, se tornar um fantasma, livre para voar pela Nova Iorque onde habita. Leo cruza-se com um polícia desastrado, que é alvejado pelo vilão referido, que pôs em marcha um plano para destruir Nova Iorque a partir de um vírus informático. Formam então um trio com uma intrépida jornalista (e o interesse amoroso do polícia) para conseguirem enfrentar o perigo, descobrindo pelo caminho forças que desconheciam.

A forma como Rapaz Fantasma balança a aventura, e mesmo o policial, com o drama do protagonista, encontrando um ritmo próprio e uma metáfora apropriada aos mais novos, para explorar a luta de Leo, é sinal da sua vitalidade e da criatividade e emoção que os criadores colocaram neste projecto.

“Memórias de Marnie”, de Hiromasa Yonebayashi
por RUI ALVES DE SOUSA

O novo (e anunciado como o derradeiro) filme dos estúdios Ghibli, do realizador d’ O Mundo Secreto de Arriety, estreou-se na Monstra e de lá saiu com o Grande Prémio da competição de longas-metragens. Tem uma história lindíssima sobre a memória e a amizade, em que os fantasmas e as mágoas da existência têm um papel fulcral. Voltamos a um sentimentalismo que, de certa forma, tem algo de telenovela na sua estrutura, algo que tem sido comum em certos filmes mais recentes do estúdio, como A Colina das Papoilas. No entanto, com tanto material comovente incluído nas imagens, na música e nas vozes, é impossível que alguém consiga ficar indiferente a Memórias de Marnie. São emoções que não causam feridas, mas marcas profundas que permanecerão na memória dos espectadores.

A animação é excecional, com a qualidade que os estúdios Ghibli nos foram habituando ao longo das décadas. Yonebayashi mostra, mais uma vez, como é um nome relevante para o panorama atual da animação japonesa. Um cineasta da sensibilidade, com um espírito comovente ímpar, que lida com histórias que, por mais fantasia e surrealismo que possam conter, lidam com o que de mais humano existe no cinema: as relações familiares, os traumas, as recordações, a capacidade de perdoar e recuperar o que parece ter sido extinto das nossas vidas. Memórias de Marnie ganha porque, apesar da sua narrativa andar entre altos e baixos mais ou menos constantes (e a revelação da intriga não precisava de ser tão extensivamente analisada), nunca se perde nem deixa de querer alcançar um objetivo muito preciso: um retrato fascinante e apaixonante das ligações entre passado e presente, e do constante conflito entre gerações, comum a todas as épocas históricas.

Uma nota final sobre a vitória de Memórias de Marnie na Competição de Longas da Monstra, e que é, de resto, a única crítica menos positiva que faço ao festival: esta é a repetição de um fenómeno semelhante ao de 2015, quando O Conto da Princesa Kaguya, outra produção com o selo Ghibli, ganhou o mesmo prémio no certame. Não deixa de ser curioso que esta situação nunca tenha acontecido antes, já que, por mais de uma ocasião, o festival passou, até 2013, em antestreia ou em sessões fora de competição, as produções dos estúdios de cada ano. Talvez seja uma exigência da nova distribuidora do catálogo Ghibli, a Outsider Filmes, que desde 2015 detém esses direitos, mas não me parece justo colocar produções desconhecidas do grande público a concorrerem contra estes gigantes. Porque senão, continuaremos sempre a ter vencedores óbvios, numa festa de animação que, durante anos, primou pela descoberta de novos autores e de filmes marcantes. É porque os títulos dos estúdios Ghibli são de outro campeonato à parte – e se isto será uma nova regra da Monstra, então eu só pedia que, em 2013, As Asas do Vento também tivesse estado em competição…

“Little From the Fish Shop”, de Jan Balej
por RUI ALVES DE SOUSA

Como recontar uma história mil vezes repetida? Ou então: como reencontrar as origens de um clássico dos “contos de fadas”, origens essas que pouco ou nada têm a ver com o que várias versões fílmicas dessa história nos têm vendido ao longo das décadas? No caso de Little From Fish Shop, falamos d’ A Pequena Sereia de Hans Christian Andresen, uma pequena tragédia romântica que, à força de ter sido disneyficada, no final dos anos 80, num filme que permanece hoje como a adaptação mais conhecida do conto, fez com que a cultura popular distorcesse o verdadeiro e profundo significado do que Andresen escreveu.

De facto, a história da sereia pouco ou nada tem de romântico ou feliz. E Jan Balej salienta muito bem o lado negro do conto, nesta longa-metragem rodada em animação stop-motion com algumas deficiências técnicas. O realizador leva, até, essa parte obscura a um cariz satírico da modernidade, inexistente nos escritos de Andresen. Little From the Fish Shop é, assim, uma versão cinematográfica desaconselhável a crianças, pela sua abordagem adulta das temáticas centrais do texto. A moral da história ganha novos contornos, num mundo em que a família da pequena sereia saiu do mar e foi morar para a cidade, onde têm uma peixaria.

Mas o essencial mantém-se: Pequena quer conhecer os humanos e ser como eles, aceitando deixar a sua barbatana para ir atrás do seu grande amor. Amor esse que, aqui, é apenas um vulgar e desonesto barman, que gere uma casa de prostituição, com os seus clientes muito… peculiares. É a esse mundo que Pequena terá de se sujeitar, e com ele, Balej conseguiu renovar um clássico e dar-lhe um novo interesse. É o maior mérito deste seu filme, uma animação com tons urbanos, sujos e deprimentes, em que o sonho e o triste destino de Pequena são uma metáfora (curiosamente positiva) para a ambição e o desejo de concretização dos nossos sonhos. É a expressão máxima do provérbio “Quem não arrisca, não petisca”, num filme com desequilíbrios narrativos, mas com algumas ideias visuais muito distintivas e que dão a Little From the Fish Shop um encanto próprio.

“Sarilhos a Triplicar”, de Albert ‘t Hooft & Paco Vink
por DIOGO SENO

Com pouco mais de uma hora de duração, Sarilhos a Triplicar aproxima-se no espírito e no desenho dos cartoons que marcam a infância, nomeadamente o universo Looney Tunes. É um conto de “natal”, no qual animais de estimação decidem pedir a Sinterklass os presentes que merecem, reclamando para si também esta celebração holandesa que é feita a 5 de Dezembro, um dia antes do dia de São Nicolau e que em tudo se assemelha ao Natal. Para isso, três amigos, um ferrão, um canário e um insecto-folha empreendem uma viagem à casa de Sinterklass, para lhe entregar em mão a sua lista de presentes.

Uma aventura simples, animada com doçura à antiga (em duas dimensões de linhas simples e cores garridas) e com protagonistas carismáticos, que leva aos mais pequenos o significado menos material desta celebração, com a curiosidade de vir de um país, a Holanda, pouco prolífico em cinema de animação.

“Abril e o Mundo Extraordinário”, de Christian Desmares & Franck Ekinci
por DIOGO SENO

E se o progresso técnico e científico tivesse parado antes da descoberta da electricidade, e o planeta ficasse para sempre dependente do carvão? Este é o mundo paralelo do filme, um no qual os maiores cientistas foram raptados, e a História saiu de forma diferente. É uma história alternativa, um universo steampunk, da autoria Jacques Tardi, a lenda da banda desenhada francesa, que Christian Desmares e Franck Ekinci transformaram agora em longa-metragem de animação.

Antes de mais, Abril e o Mundo Extraordinário é um filme de aventuras, em que a protagonista é movida pelo desejo de concluir o legado dos pais e encontrar a fórmula mágica da eternidade, lutando por isso contra um mundo em constante guerra e em que o progresso científico apenas a ela serve. Avril perdeu os pais numa perseguição da polícia, em que estes, misteriosamente, como outros cientistas, desapareceram após serem fulminados por um raio. O mistério do seu desaparecimento é o que põe a narrativa em andamento, e com a descoberta dos contornos deste desaparecimento se faz o percurso narrativo do filme. Estão aqui muitos dos elementos do filme de aventura: temos o polícia tótó a perseguir a protagonista, e a complicar os seus avanços, ignorando o perigo maior que alimenta desta forma, o romance (involuntário), a figura do ancião sábio (neste caso o avô da protagonista), e inclusive o sidekick, que neste caso é um felino falante, e um dos mais encantadores a agraciar o cinema de animação recente (é este que traz os momentos de humor e os diálogos espirituosos: um gato erudito, leitor de Platão e Perrault).

As delícias do mundo de Avril são muitas, e vão do encadeamento ágil das peripécias da narrativa à excelente animação. A criação deste mundo faz-se de muita imaginação visual e muita atenção ao pormenor, num estilo de animação cujo traço e cor se aproximam do da banda-desenhada. É esta atenção que dá encanto a esta história alternativa com contornos de fábula, uma similar a Invenção Diábolica, de Karel Zeman, que passou também neste festival. Largamente ambientado numa Paris cinzentíssima (em muitas cenas, o filme quase que se aproxima do monocromático), Abril leva-nos dos mais elegantes restaurantes (em zepelins), a elaboradíssimos transportes alternativos, passando pelo fundo do Sena, por museus, pelo interior de estátuas. Um universo também inspirado em Verne, que o referido Zeman de certeza apreciaria. Pena que a emoção do filme – a relação de Abril com a sua família e o seu animal de estimação falante, e, depois, com o seu interesse amoroso – não convença, exactamente por repousar nas convenções deste género de aventuras, sem exactamente encontrar uma voz própria.

O final em que a protagonista se encontra com o vilão caricatural e previsível enfraquece também o comentário sobre os fascínios e os perigos da ciência e do progresso tecnológico. Fica no entanto uma boa aventura por um mundo original e visualmente rico que dá gosto percorrer por algumas horas.

“Fimfarum 2”, de Jan Balej, Vlasta Pospisilova, Aurel Klimt, Bretislav Pojar
por DIOGO SENO

Quatro curtas realizadas por talentos de diferentes gerações da animação checa compõem a segunda leva de narrativas inspiradas nos contos de Jan Weirech, Fimfarum. As curtas que compõem esta “antologia” foram feitas na técnica de stop-motion, que, como referiu Balej, homenageado com uma retrospectiva na edição deste ano do festival onde este filme se insere, é o que os “checos fazem”. Outros nomes sonantes da animação europeia, como Jiri Barta e Jan Svankmajer, também eles checos, trabalharam com esta técnica. Aqui, encontramos quatro contos de fadas de tons muito diferentes, narrativamente, mas que visualmente, apesar das marcas de cada um dos seus realizadores, se aproximam, com as suas figuras toscas em cenários de cartão pintado.

O primeiro conto, realizado por Jan Balej, trata-se de uma explicação poética para a salinidade do mar, numa narrativa que funde uma história de inveja entre irmãos e um objecto roubado a Lúcifer que traz a abundância a um simples camponês e a toda a sua aldeia. O segundo conto, de tom burlesco e pastoral, trata da história de três buliçosas irmãs que, para decidir quem fica com um diamante que encontram em conjunto, se põem numa disputa para saber qual consegue melhor fazer do seu marido um tolo. A terceira história desloca-nos da Europa para o Oriente, onde vamos encontrar três irmãos corcundas às voltas com o seu destino, no segmento narrativamente menos satisfatório, mas visualmente o mais negro, e aquele onde a animação stop-motion mais assume as suas linhas grotescas. O último, sobre um minúsculo menino levado de casa de perigo em perigo, é o que encontra o melhor equilíbrio entre as peripécias fabulosas que caracterizam estes contos, numa mistura de encanto, mistério e a dose certa de negrume, que passa também na animação de uma forma mais expressiva. O desfecho traz estes contos para o presente, mostrando de forma engraçada porque é que estas narrativas fantásticas são perenes.

“Cheatin”, de Bill Plympton
por DIOGO SENO

Uma história de amor cuja primeira meia hora é tão desmedida quanto encantadora. Uma mulher voluptuosa passeia-se pela cidade, seduz e deixa-se seduzir, e conhece um homem que a salva nos “carrinhos de choque”. O despertar do amor e o início da relação são a apoteose da emoção transbordante que Plympton cria com os seus desenhos: os amantes entregam-se, fundem-se, os coros levantam-se nos céus e a Traviata de Verdi explode na banda-sonora.

A animação é fluída, ganha diferentes cores, exprime-se em diferentes traços e estilos, as figuras metamorfoseiam-se, linhas simples transformam-se em figuras maiores, e tudo pulsa como os corações que se descobrem. Depois vem a traição que dá título ao filme, e as emoções desmedidas não encontram equilíbrios na narrativa, que começa a repousar em estereótipos. Com uma duração mais curta, as fraquezas de Cheatin – nomeadamente a repetição de clichés quanto às relações amorosas, com os papéis de género definidos, e as suas mulheres estereotipadas – seriam menos evidentes.

Não se pode negar, contudo, a perícia de Plympton o desenhador, o caricaturista com um sentido de humor excêntrico, por vezes macabro, e o encanto contagiante do início do filme.

“O Profeta”, de Roger Allers
por RUI ALVES DE SOUSA

A partir do livro homónimo de Kahlil Gibran, que inspirou gerações de leitores, o realizador de O Rei Leão fez este O Profeta, longa-metragem que mistura várias técnicas de animação. Há a história principal, da responsabilidade de Allers, com animação 2D convencional (e demasiado computadorizada), e a cada momento, em sincronia com vários elementos da história, encontramos pequenos segmentos da autoria de outros cineastas (um deles, Bill Plympton, apresentou a sessão no Cinema São Jorge). Isto porque a animação serve para ilustrar o seu pensamento do dito “profeta”, homem que fascina a multidão, mas que é odiado pelo regime ditatorial que a controla.

Esse indivíduo é uma espécie de lenda da região que tem ensinamentos inspiradores para todos (mas que não passam de banalidades cheias de retoques estilísticos), acabando por atrair a atenção de amigos e inimigos. Cada uma dessas “lições de vida” é assim ilustrada por um realizador diferente, em momentos de interesse variado, alguns com canções de qualidade duvidosa, e todos eles com ideias filosóficas vulgares.

É um filme de auto-ajuda, que quer puxar a lágrima, levando a emoção manipulada ao extremo do inaceitável. Só se suporta quando encontramos alguma coisa humana naqueles bonecos ocos que passeiam pelo filme, entre maniqueísmos e simplismos existenciais. Allers fez das ideias matreiras da obra de Gibran um filme preguiçoso, com momentos de comédia involuntária constantes. As sequências animadas falham maioritariamente, não conseguindo destacar-se nem evidenciar as qualidades dos seus autores (com exceção da primeira, e belíssima, animação filosófica do filme). Um filme de domingo à tarde, só que foi feito com o auxílio de imagens animadas. De resto é igual: na pieguice, na presunção, na aparência limpinha, e na superficialidade de todos os seus elementos. E entre tantas frases feitas, só faltava mesmo que o dito profeta dissesse: “estar vivo é o contrário de estar morto”…

“Miss Hokusai”, de Keiichi Hara
por RUI ALVES DE SOUSA

Miss Hokusai é a história de dois artistas, o pai introspetivo e que é considerado um mestre pelos seus pares, e a filha. Se Katsushika Hokusai foi um pintor cujos trabalhos reconhecemos de imediato (sem sabermos, provavelmente, que ele é o autor), Oei Katsushika, a descendente que seguiu os seus passos, permanece um nome desconhecido do grande público. Por isso, Keiichi Hara decidiu realizar este biopic animado, uma singela homenagem a uma artista cuja dedicação à arte se cruzou sempre com a difícil relação com o pai.

No dia da mulher, foi este o filme da competição que passou na Monstra. Drama sentimental, que se apoia nas temáticas familiares e as intercruza com a arte e a busca pela inspiração, Miss Hokusai é uma bela viagem ao Japão do tempo dos samurais, em que a rígida e específica hierarquia e os códigos de conduta da sociedade dominavam as relações humanas. Um filme tecnicamente irrepreensível, em que o uso das ferramentas digitais não se sobrepõe às formas simples e tradicionais dos movimentos das personagens.

O único problema está mesmo na narrativa: começando por ser uma obra emocionante sobre a relação de uma família, evolui para uma mistela de episódios dispersos, sem grande fio condutor, que se tentam encontrar no subplot mais poderoso da história, que é o da irmã mais nova da jovem Hokusai, uma menina cega e que marca a tensão entre os dois artistas. No final ficamos com um sabor amargo na boca. O filme prometia muito, mas o que acabou por nos dar, para além do retrato desfragmentado de uma vida muito interessante? Não conseguimos entender. Mas pelo menos ficamos com belos planos e sequências na memória, que se por um lado, não nos permitem descobrir quem era, de facto, esta mulher, nos apresentam um mundo diferente do nosso, e uma arte que, se caiu em desuso na atualidade, não perdeu nenhum fascínio com o passar do tempo.

“Invenção Diábolica”, de Karel Zeman
por DIOGO SENO

O festival deu a oportunidade de ver o documentário sobre este mestre do cinema de animação no dia anterior. Tendo em conta a escassa afluência a esse filme, a sala igualmente “vazia” desta sessão não surpreendeu, mas causou pena. Uma exibição de um histórico da animação como este merecia um público maior.

Falemos então sobre algumas das razões dos seus encantos. Fascinado desde sempre pelo universo de Júlio Verne, Zeman fez este filme como uma elaborada e apaixonada homenagem ao escritor francês. Em primeiro lugar, trata-se de uma adaptação de Face au Drapeau, sobre a invenção de uma perigosa arma que permita ao vilão Artigas conquistar o mundo a partir do seu esconderijo no interior de um vulcão. Para esse fim, rapta um brilhante cientista, mas traz com ele também o seu assistente (o narrador e herói do filme). A narrativa, como se espera numa adaptação de Verne, fala do fascínio pela ciência, mas encontra-se longe da tentativa de veracidade que a maior parte dos filmes de ficção científica tentam hoje criar. Ao invés, encontramos um universo de fantasia que, apesar de fascinado com as possibilidades da ciência, chega até nós com a essência com que chegaria uma fábula.

Mais do que na narrativa, que é límpida e provoca pouca emoção, embora proporcione alguns momentos de burlesco de nota, o interesse está todo nas imagens. Baseado nas ilustrações que povoavam as obras do escritor, o universo visual de Invenção Diabólica faz-se da mestria de um mágico aprendiz de Méliès (e também o mestre francês adaptou Verne). Cenários pintados em cartão combinados com interiores ou exteriores através de engenhosas ilusões ópticas, o mundo é o de uma gravura que ganha vida, visualmente elaborado, elegante, mas que se percorre sempre na expectativa de ver “desaparecer”, ou desfazer. Balões de ar quente, camelos patinadores, submarinos, palácios à beira de falésias, polvos gigantes, povoam o filme com ingenuidade e surpresa. A surpresa sempre renovada com que se olha para o que se admira. As figuras humanas, misturadas com as animadas e com os cenários de cartão, tanto ganham leveza como demasiado peso, fazendo temer a “estabilidade” dos espaços que elas habitam. Esta instabilidade é simbólica numa obra que fala sobre os perigos do progresso técnico, nomeadamente face a uma arma que torna qualquer distância insignificante no alcance da sua destruição maciça. Longe da verosimilhança, este é um mundo melhor apreciado, como referiu Terry Gilliam no referido documentário, a propósito do cinema de Zeman, com o olhar inocente da infância. Um exercício estimulante, que o cinema de animação nos propõe uma e outra vez, com resultados muitas vezes fascinantes, como no caso desta obra.

“Minúsculos – O Vale das Formigas”, Thomas Szabo & Hélène Giraud
por DIOGO SENO

Uma recém-nascida joaninha separa-se da sua família, é perseguida por cruéis moscas, fica sem uma asa e perde-se na floresta, indo parar a um piquenique abandonado horas antes por dois gigantes humanos. Lá cruza-se com as formigas que vão ser a sua nova família e a vão levar numa grande aventura. As delícias deste mini-épico todo passado numa natureza a perder de vista, pois a perspectiva é sempre a da “miniatura” do ponto de vista dos adoráveis pequenos insectos que protagonizam esta odisseia, são algumas.

Se a narrativa é claramente demarcada para as crianças mais pequenas, com o seu arco simples e o desadorno das suas personagens, os realizadores povoaram o seu filme de alguns apontamentos invulgares e apreciáveis. Quer isto dizer que, fazendo um filme para os mais pequenos, não os subestimaram. Este território do “mundo miniatura” é privilegiado do cinema infantil, incluindo animação, e havendo já diversos filmes de animação digital com protagonistas insectos (Uma Vida de Insecto da Pixar ou A História de uma Abelha, da Dreamworks, por exemplo), Minúsculos traz no entanto a frescura da técnica.

Os protagonistas são digitais, mas o mundo que eles habitam é o real, numa mistura curiosa e dinâmica entre a animação digital e a imagem real. E para aproximar-se do público-alvo, o traço dos bonecos quer-se simples, cartoonesco (antes de ser longa-metragem, este universo foi uma série de televisão bastante popular em França). Sem diálogos, o filme dá no entanto voz aos seus protagonistas, ao atribuir-lhes a capacidade de se entenderem com a emissão de uns sons soprados, como se todos eles tivessem um instrumento de sopro poderoso no lugar de cordas vocais. É também interessante ver como os realizadores com atenção e ternura tentaram reproduzir o “trânsito” da natureza. É que mesmo sendo pequenos, a joaninha e as suas companheiras formigas empreendem uma viagem por terra, água e ar, encontrando outros insectos e animais que a povoam, na tentativa de regressar a casa com um abastecimento gigante de cubos de açúcar. Com as inimigas formigas vermelhas no seu encalce, a viagem complica-se, num género de filme de perseguição, onde os perigos são capazes de deixar os espectadores mais pequenos sobressaltados. Apesar da criatividade dos autores em criar situações de comédia física com este elenco carismático, o filme acaba no entanto por se tornar cansativo na duração. Um confronto épico, ao género do cerco a Minas Tirith em O Senhor dos Anéis: O Regresso do Rei, conclui esta odisseia com algum fôlego mas com pouca originalidade.

“Film Adventurer Karel Zeman”, de Tomáš Hodan
por DIOGO SENO

Zeman foi um aventureiro, inclusive na sua juventude, enquanto viajou pela Europa e na sua ascensão rápida no mundo da publicidade. Este documentário refere-se também, e sobretudo, à sua aventura enquanto artista, um dos mais celebrados que a animação europeia conheceu. A estrutura do filme é interessante: ir alternando entre a reconstrução do percurso artístico de Zeman (a sua vida pessoal, após a breve introdução no início, fica largamente de fora) e uma experimentação no presente: uma turma de animação de Zlín, onde Zeman passou a maior parte da sua vida, a tentar reconstruir cenas icónicas dos seus filmes. É uma das formas que o documentário adopta para desconstruir a magia deste feiticeiro.

Fascinado pelo universo da revolução industrial, pela ficção de Júlio Verne, Zeman foi o autor de uma das obras inspiradas no universo do escritor francês mais aclamadas, A Invenção Diabólica (que passa também nesta edição da Monstra), um êxito de bilheteira e crítica, dos EUA ao Japão, que arrecadou uma mão cheia de prémios. Zeman, com o seu jeito para desenhar, aprendeu por si, e muitas vezes criou, as técnicas que permitiram desenvolver os seus filmes, ensinando pelo caminho as equipas com que trabalhou. Um percurso ecléctico, que passou da animação mais rudimentar aos filmes que misturavam actores reais com técnicas de animação visualmente inspiradas nas gravuras dos livros de Verne que tanto admirava.

Como ressalvam os diferentes realizadores que testemunham a sua admiração pelo realizador checo, entre os quais Tim Burton e Terry Gilliam, este era um realizador com truques, uma espécie de mago do cinema, descendente directo, dir-se-ia, de Méliès. A sua técnica assentava sobretudo em sofisticadas ilusões ópticas. Uma forma de fazer muito longe dos actuais efeitos digitais, mas tão inventiva quanto estes. Uma forma de fazer inimitável, largamente perdida. Até os seus maiores admiradores, entre os quais o embevecido Gilliam, trabalham hoje sobretudo com o digital. É de Gilliam a definição mais simpática que passa neste documentário: era um cinema ingénuo e engenhoso. Com a abertura em 2012 do Museu Karel Zeman, o restauro digital de três das suas obras e agora este documentário, espera-se que este realizador volte a despertar a atenção dos interessados em cinema de animação e de fantasia europeu.

“O Rapaz e o Monstro”, de Mamoru Hosoda
por RUI ALVES DE SOUSA

No segundo dia da Monstra de 2016 foi exibido o mais recente filme do realizador Mamoru Hosoda. É um nome já conhecido do festival, que passou por edições anteriores e ganhou um prémio da competição de longas metragens em 2008, como referiu Fernando Galrito na introdução ao filme. Êxito de bilheteira no Japão (foi o segundo título mais rentável no país em 2015), O Rapaz e o Monstro é uma aventura divertida e bem humorada, com um espírito familiar, pertencente a um tipo de histórias que se tornou comum nos animés, tanto no cinema como na televisão. Não será por acaso que Hosoda esteja ligado a universos animados emblemáticos para a geração que, entre os finais dos anos 90 e os primórdios do terceiro milénio, via programas com “bonecos” japoneses exibidos pelos canais generalistas – falamos de One Piece e, sobretudo, de Digimon.

É esta série que O Rapaz e o Monstro faz lembrar: ao centrar-se na demanda de um pequeno rapaz que se sente perdido na vida urbana, e que acidentalmente vai parar a um mundo paralelo, habitado por “monstros”. São animais de todas as espécies, que falam, competem entre si e, imagine-se!, praticam artes marciais. Ren, o garoto protagonista do filme, torna-se o aprendiz de um mestre sem trabalho – e entre momentos mais ou menos interessantes, lá vamos acompanhamos o crescimento do jovem entre dois mundos (na arte das lutas e, acima de tudo, na sua construção como um ser humano), e o companheirismo que vai crescendo entre o professor e o seu aluno.

Se esquecermos a mitologia simplista e típica deste género (que ganha proporções demasiado inverosímeis e preguiçosas), e a realização banal e formatada de Hosoda, temos em O Rapaz e o Monstro um bom motivo de entretenimento para todas as idades. Os mais pequenos vão gostar mais do que os adultos, obviamente, mas o humor do filme e das personagens sustenta a atenção tanto dos pequenos como dos mais crescidos. É aí que temos a grande força desta história animada, que se vê com gosto, e que será facilmente esquecida, daí a umas semanas, pelos seus espectadores. Há aqui diversão suficiente que sustente as duas horas que o filme demora a mostrar-nos as múltiplas facetas desta aventura.

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