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Diálogos entre o universo pop/rock e a música clássica: 6 – Malcolm McLaren

Texto: NUNO GALOPIM

No momento em que entram em cena novos álbuns de Anna Meredith ou Rufus Wainwright, recordamos episódios em que, como nestes discos, os universos da pop, do rock e da clássica souberam entrar em diálogo.

Malcolm McLaren
“Fans” (1985)

Com carreira inicialmente feira na outra face dos discos, movendo peças nos bastidores sobretudo como manager (dos Sex Pistols ou dos Bow Wow Wow), Malcolm McLaren estreou-se como músico ao apresentar uma série de ensaios sobre a emergente cultura hip hop em Duck Rock, álbum de 1983 no qual explorava ainda algumas heranças da música urbana africana. O passo seguinte levá-lo-ia a algo completamente diferente: o mundo da ópera.

Com Madam Butterfly, canção baseada na trama narrativa (e incluindo até elementos da ária Un bel di vedremo) da ópera Madama Buttefly de Puccini, Malcolm McLaren anunciava em finais de 1984 a criação de uma visão de diálogo possível entre a cultura pop e o universo da ópera. O sucesso do single em vários mercados europeus alertava as atenções. Até porque, com o single, chegava um álbum ao qual chamou Fans.

Pensado conceptualmente, com um alinhamento que traduzia em várias outras composições o modelo de diálogo desenhado no single de apresentação Fans é um disco algo desigual na forma de estabelecer esses contactos, sendo mais interessante talvez no conceito do que em todos os momentos da sua concretização.

O alinhamento centra-se essencialmente em óperas de Puccini – além de duas incursões por Madama Butterfly há abordagens pop a Turandot e a Gianni Schicchi – abrindo como única exceção um olhar (com maior presença das guitarras) pela Carmen de Bizet, que seria escolhido como segundo single, embora sem o impacte do primeiro.

1968. Wendy Carlos
“Switched on Bach” (Columbia Records)

Com uma história que recua à alvorada do século XX, a música electrónica tinha sido durante anos ferramenta essencialmente ao serviço de compositores na linha da frente da invenção da música contemporânea, o que não impediu, pontualmente, a utilização numa ou outra gravação de música pop, de um destes novos instrumentos, como sucedeu, por exemplo, com um theremin em Good Vibrations, dos Beach Boys. Contudo, e antes de uma mais evidente investida de visionários da música pop por estes domínios, entre os primeiros discos de apelo “popular” nascidos entre instrumentos electrónicos está um conjunto de álbuns que Wendy Carlos (então ainda assinando como Walter Carlos), lançou entre finais dos anos 60 e inícios de 70, reinventando, com um novo teclado Moog, algumas obras de compositores clássicos.

O primeiro desses discos, Switched-On Bach, editado em 1968, representou inclusivamente um marco na história da música electrónica, conquistou três Grammys e gerou um fenómeno de vendas na época. Nascida em Rhode Island em 1939, Wendy Carlos começou por estudar física e música antes de, em 1962, se mudar para a Columbia University, em Nova Iorque, para aprofundar os seus conhecimentos em composição. É aí que conhece Robert Moog, com quem colabora, ajudando-o a desenvolver as potencialidades de um sintetizador a que, depois, dá voz nesse disco.

O álbum na verdade decorreu de uma ideia que Wendy Carlos vinha já a desenvolver há algum tempo, no Columbia-Princeton Electronic Music Center. Entre as várias peças que fora gravando, na companhia de Benjamin Folkman, estavam várias composições de Bach, cuja interpretação no teclado Moog monofónico então usado transportava para outra dimensão diferente da que habitualmente era conhecida das salas de concerto e dos discos de música clássica. Entusiasmada pela ideia, a Columbia Records avançou com a ideia da gravação de um álbum, materializando-se em Switched-On Bach um conjunto de visões novas sobre a música de uma referência maior do barroco, aqui contudo em cenário futurista.

O álbum inclui dez faixas, entre as quais os três andamentos do Concerto de Brandemburgo Nº 3 ou dois excertos do primeiro volume dos Prelúdios e Fugas para Cravo Bem Temperado. O impacte do disco motivou uma sequela imediata em 1969 sob o título The Well Tempered Clavier, alargando o repertório a nomes como os de Monteverdi, Handel ou Scarlatti, mas mantendo a mesma forma de agir e usando o mesmo Moog. Wendy lançaria mais outras duas expressões desta mesma ideia em Switched-On Bach II (1973) e Switched-On Bach 2000 (1992).

Stanley Kubrick foi um dos muitos que se deixaram encantar pela visão que Wendy Carlos lançava nestes discos. Tanto que a chamou para assinar a banda sonora de A Laranja Mecânica (1972), reencontrando-se ambos mais tarde, em Shining (1980).

PS. A imagem usada na capa mostra, por detrás do modelo que sugere a figura de Bach, um Moog semelhante ao usado na gravação do disco.

1992. Philip Glass
“Low Symphony”

Foi em 1992 que Philip Glass recebeu o primeiro pedido para que compusesse uma sinfonia. Por essa altura era já um compositor globalmente reconhecido, com uma série de óperas inclusivamente gravadas em disco, peças como Music in 12 Parts, Einstein on the Beach ou Music in Similar Motion entendidas como bases de uma nova linguagem (da qual entretanto se afastara, evoluindo), bandas sonoras de filmes como Koyaanisquatsi ou Mishima transformadas em casos de culto e álbuns como Glassworks ou Songs From Liquid Days mostrando como um compositor de finais do século XX se adaptava também aos formatos “clássicos” da música gravada. Dizia-lhe então o maestro Dennis Russel Davies (que se transformaria num dos seus maiores colaboradores) que não ia deixar que Glass fosse um “daqueles compositores de ópera que nunca fizeram uma sinfonia”. A encomenda surgiu da parte da Brooklyn Philharmonic Orchestra, e levou Glass a procurar um caminho novo para a sua música orquestral. Encontrou o mote num álbum histórico de David Bowie: Low, um disco (de 1977) criado numa parceria com Brian Eno, encontrando ali Glass métodos de pensamento semelhantes aos que reconhecia em vanguardas da composição daquele tempo. Originalmente apresentada como Low Symphony, é uma obra em três andamentos, cada qual baseado num tema do álbum (um deles, na verdade, editado como extra numa reedição de 1991). O material musical de Bowie e Eno é claro ponto de partida, mas é da visão de Glass que emerge uma abordagem orquestral que acabaria por abrir horizontes a uma série de novas experiências que depois realizou em experiências sinfónicas subsequentes.

Originalmente gravada na altura pela orquestra que assegurou a encomenda (em edição pela Phillips), a sinfonia – que agora se apresenta como Symphony No. 1 – conheceu mais recentemente uma primeira gravação ao vivo (o disco que até aqui existia nascera de registo em estúdio, obrigando cada naipe e secção da orquestra a gravar em separado, sob um ‘clic’ de guia a garantir a precisão dos tempos). Novamente sob a batuta de Dennis Russel Davies, mas agora com a Sinfonieorchester Basel, a primeira sinfonia de Glass respira novamente numa abordagem clara e luminosa, servindo uma vez mais de importante farol para um processo de diálogo entre as esferas da música pop e as da música erudita, que há muito tem em Philip Glass um dos seus mais ecléticos representantes.

A experiência teve continuidade, pouco depois, numa segunda sinfonia (na verdade a quarta de Bowie), novamente tendo a música de Bowie como ponto de partida. Tal como Low, esta Sinfonia Nº 4 de Philip Glass optou essencialmente por colher inspiração e matéria prima a transformar essencialmente entre os temas instrumentais do álbum de Bowie (Sense Of Doubt, Neuköln e V2 Schneider), juntando-lhes adaptações de duas canções (Heroes e Sons of The Silent Age) e ainda uma metamorfose de Abdulmajid, um velho outake das sessões de Heroes, finalmente misturado para usar como extra numa reedição em CD do álbum, em 1991. A sinfonia evoluiu de forma distinta do carácter mais “clássico” da Low Symphony. Tal facto deveu-se ao entusiasmo demonstrado pela coreógrafa Twyla Tharp (para quem Glass já trabalhara, por exemplo, em In The Upper Room, na década de 80) em fazer da sinfonia o ponto de partida para um novo bailado. Daí os seis curtos andamentos que a constituem. A estreia da nova peça fez-se, com a companhia de Twyla Tharp em Nova Iorque, em inícios de 1997, tendo conhecido a sua primeira apresentação em formato de concerto poucos meses depois, no Royal Festival Hall, em Londres. Pouco depois, com a American Composers Orchestra, sob direcção de Dennis Russel Davies, uma primeira gravação surgiu, editada ainda esse ano pela Point Music.

The Art of Noise
“The Seduction of Claude Debussy” (1999)

Ao lembrar que a obra de Claude Debussy teve uma presença fundamental no definir dos caminhos para a música na viragem para o século XX, os Art Of Noise procuraram, cem anos depois, com novo século e milénio na linha do horizonte, recordar como o grande compositor francês tinha então respirado esses desafios que o futuro trazia num calendário que trazia ventos de desejo de mudança.

“Quando Debussy morreu, a 25 de março de 1918, Paris estava a ser bombardeada pelos alemães. E estava a chover”… É assim, na voz do ator John Hurt, que entramos em The Seduction of Claude Debussy, um biopic na forma de disco que não só toma o protagonista como figura central de uma história que se conta mas a ele vai frequentemente buscar ecos de uma obra que, assim, se dilui entre a nova música que o quarteto britânico criou em sua homenagem.

Sem procurar seguir uma lógica narrativa necessariamente cronológica o percurso faz-se sobretudo evocando ecos de memórias da vida e e marcas da personalidade do compositor. Entre eletrónicas (afinal estamos em terreno Art of Noise), cenografias elaboradas com apreço pelo detalhe e palavras bem pensadas, como quem escreve para teatro, The Seduction of Claude Debussy é, acima de tudo, uma metáfora sobre a passagem de século, tomando Debussy como recordando como figura que nos permite lembrar como, cem anos antes, também os sonhos e as dúvidas moravam entre todos os que pensavam o futuro que chegaria depois do dia 31 de dezembro.

Sem representar exatamente uma expressão do “álbum concetual”, deixando todavia clara a presença transversal de um tema e um protagonista, o disco que assinalou o pontual regresso às novas edições após longo silêncio, recuperava ainda o sentido agit prop que fora característica distintiva das primeiras afirmações da alma pop da banda (e também da editora à qual nascia associada, a ZTT Records). O texto narrado joga ocasionalmente com palavras e frases de ordem, ao mesmo tempo que música cita elementos de obras de Debussy ou do próprio legado dos Art of Noise, diluindo-os numa visão que passa pelo drum’n’bass, o downtempo, as estéticas ambient e a pop. A cantora lírica Sally Bradshaw divide o “palco” com a postura pop de Donna Lewis e o rap de Rakim. Debussy teria gostado.

2009. Murcof
“The Versailles Sessions”

A obra do mexicano Fernando Corona, através do seu projecto Murcof, conta-se entre as mais inventivas e estimulantes que a música electrónica nos revelou na presente década. Descobrimo-lo em Martes (2002), disco que juntava uma lógica de composição atenta ao pormenor, ao fragmento, revelando sugestões de contemplação onde, por entre as electrónicas, brotava a presença (determinante) de outras paisagens, entre as quais se destacavam samples de obras de Arvo Pärt. Como que a assinalar, desde logo, o seu interesse em lançar a sua curiosidade sobre terrenos mais próximos da música habitualmente rotulada como “erudita”, abrindo assim o horizonte das possibilidades a um espaço mais vasto que o das mais frequentes escolas seguidas por muitos dos artesãos contemporâneos das electrónicas. Depois editou discos de remisturas e mais dois álbuns de originais: Remembranza (2005) e Cosmos (2007), que deram novo corpo à mesma demanada. E em 2009 lançou um disco que considera exterior a este percurso… Mas que, na verdade, traduz o seu mais profundo e bem sucedido mergulho num espaçlo de confluência de linguagens, dele resultando uma música que é uma verdadeira dor de cabeça para quem gosta de taxonomias, porque impossível de rotular.

The Versaillhes Sessions nasceu de um desafio concreto para um espectáculo nos jardins do Palácio de Versalhes. Uma obra site-specific, portanto, criada para o espectáculo Les Grands Eaux Nocturnes uma noite de música e luz frente a uma das grandes fontes (jeux d’eau) que adornam o Jardin du Roi, para a qual Fernando Corona fez questão de juntar a uma composição claramente do presente uma série de ecos dos dias em que esta era “a” casa da mais faustosa corte europeia, na qual trabalharam muitos compositores.

O disco junta as seis composições apresentadas. Por elas corre o sentido contemplativo, lento, habitual na música de Murcof. Regressa um claro interesse pela exploração de texturas. Mas mais que nunca Fernando Corona aceitou os desafios lançados a si mesmo. A música, que parece sugerir um espaço abstracto, acaba por ganhar forma, corpo, mesmo um carácter cinematográfico.

A presença de instrumentos do século XVII (entre os quais um cravo, viola da gamba ou violinos) e de um soprano sublinham os cenários e lança narrativas que evocam concretamente figuras como Lully ou, inevitavelmente, Luis XIV. Fantasmas e memórias cruzam-se numa série de composições onde passado e presente se diluem. Fosse vivo, Kubrick teria feito um novo filme se escutasse esta música.

2014. Steve Reich
“Radio Rewrite” (Nonesuch)

O cruzamento dos mundos de Steve Reich e dos Radiohead ganhou fôlego quando, em 2010, o compositor norte-americano viu Johnny Greenwood, guitarrista do grupo britânico, a atuar num festival em Cracóvia, interpretando o seu Electric Counterpoint. Reich decididamente gostou. “Foi uma grande performance e começamos a falar”, contou depois Reich, que descobriu os antecedentes do músico britânico como violinista assim como o seu trabalho presente como compositor, que descreveu mais tarde como “muito interessante, sobretudo se somado ao seu papel protagonista num grupo rock tão importante e inovador”, lemos no booklet da primeira gravação desta peça.

A obra dos Radiohead foi, depois desse encontro, uma descoberta para Steve Reich. E dessa experiência nasceu o estímulo que mais tarde, sob encomenda do coletivo Alarm Will Sound, gerou um trabalho de “rescrita” de duas canções do grupo inglês: Everything in it’s Right Place, do álbum de 2000 Kid A e Jigsaw Falling Into Place, de In Rainbows, de 2007. Radio Rewrite é assim um exercício de descoberta de uma voz com uma personalidade clara sobre os caminhos possíveis de encontrar através de duas canções de berço pop/rock. Ecos das canções, sobretudo fragmentos das linhas melódicas renascem assim diluídas num corpo novo, surpreendente, com aquele valor de soma de experiências que podemos imaginar segundo a velha máxima que diz que quem conta acrescenta um ponto. E mesmo sendo aqui e ali claras as raízes desta “rescrita”, no fim estamos claramente em território Reichiano.

Em Everything In It’s Right Place Nico Muhly nota (no booklet que acompanha o disco) que há logo na canção dos Radiohead uma expressão de uma melodia que “nunca aterra em pleno nos acordes que a acompanham. A leitura de Steve Reich assinala essa característica, fazendo surgir fragmentos da melodia “em vários disfarces através de uma vasta variedade de acordes”, como refere o texto. Já em A Jigsaw Falling Into Place Muhly repara que os Radiohead usaram uma estrutura harmónica cíclica “mas imprevisível”, daí Steve Reich tendo tomado partido, explorando “as possibilidades desta estrutura de acordes”, mas com um tempo mais lento, que valoriza assim o detalhe.

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