Afinal foi Shakespeare quem pôs as palavras míticas na boca de César
Texto: NUNO GALOPIM
O que eram as virgens vestais e qual era o seu estilo de vida? Poder “fascista” em Roma? Havia? E o que era? O que quer dizer SPQR (até quem nunca pegou num livro de História, mas leu um Astérix, já viu estas iniciais? Que traje de gala se usava na Roma imperial e que cortes de cabelo estavam em voga? Como era a vida de um gladiador fora da arena? Como eram controlados os preços no comércio da altura? Estas e muitas outras questões podem não ser exatamente o “que teve medo de perguntar”, como sugere o subtítulo do livro. Há contudo nesse mesmo subtítulo, que nos diz, de fio a pavio, “tudo o que sempre quis saber sobre os romanos mas teve medo de perguntar”, a proposta de uma informalidade na comunicação que Veni Vidi Vici coloca em cena, fazendo deste livro de Peter Jones, que a Texto agora publica entre nós, uma das mais acessíveis, esclarecedoras e bem arrumadas entre as obras de divulgação histórica sobre Roma que chegaram às livrarias nos últimos tempos.
Antigo professor de Cultura Clássica em Cambridge e na Universidade de Newcastle, aposentado em 1997, Peter Jones publicou durante largos anos a coluna “Antigo & Moderno” na The Spectator e tem publicados vários livros sobre os períodos da história aos quais votou o cerne das suas atenções.
Em Veni Vidi Vici toma como título uma expressão latina que significa “cheguei, vi, venci”, e que universalmente atribuímos a Júlio César. Na página 188 do livro, o autor explica, contudo, que as palavras foram inscritas pelos soldados de César num letreiro quando , em 46 a.C., caminhavam sobre Roma, para celebrar a vitória sobre as tropas de Pompeu. Esta é uma das muitas referências num volume de 394 páginas que arruma os grandes factos e personagens numa ordem cronológica, associando depois a alguns desses polos as observações sobre a vida quotidiana, a organização do território, o seu modelo de gestão, os grupos sociais…
Há um cuidado na citação de fontes históricas na hora de evitar as mitologias que o tempo foi inscrevendo em volta de certas figuras e episódios. Como, por exemplo, ao citar Marco António Seutónio, membro da administração do imperador Adriano e autor de As Vidas dos Doze Césares, quando lembra a morte de Júlio César, descrevendo a sucessão dos eventos, observando que o general foi apunhalado 23 vezes “sem proferir uma palavra, mas apenas um gemido ao primeiro golpe”, notando ainda que “alguns tenham escrito que quando Marco Bruto investiu contra ele, César terá dito em grego: também tu, meu filho!”… Em grego! Ou seja, “kai su, teknon” e não o latim que a peça de Shakespeare mitificou.
Numa abordagem simples e direta, Peter Jones avança entre séculos de história, das origens da cidade à sua queda. Recordando, por exemplo, como a construção de grandes monumentos foi compreendida por Augusto, o primeiro imperador, como uma expressão do seu poder “para vincular as pessoas à sua visão do que deveria ser Roma”. Ou seja, como forma de propaganda. Lembra também como o mesmo imperador ordenava uma contagem regular da população para efeitos tributários, havendo por isso registos claros do que se passava pelo império e a noção de quem o administrava em cada região. O livro observa então algumas contradições entre relatos da Natividade segundo São Lucas e alguns dados factuais que não encaixam nas datas e lugares. Mais adiante ressalva que, longe de conhecer as visões sobre “subjetividade individual” que caracterizou muito do discurso sobre História depois de Freud, os historiadores da época praticamente ignoravam o papel da mulher na sociedade. Eram, como descreve, “valorizadas individualmente, mas os grandes feitos públicos eram coutada dos homens, que detinham os cargos políticos e comandavam os exércitos em batalha”. E que, assim sendo, “qualquer mulher que aspirasse a fazer esse género de coisa era olhada como uma perigosa pervertida”. E como estas histórias observações, há mais para fazer da leitura de Veni Vidi Vici um bom ponto de partida para não só (re)descobrir Roma, mas também para refletirmos sobre os caminhos que a história depois tomou. Umas vezes para melhor. Noutras nem por isso.
“Veni Vidi Vici”, de Paul Jones, está publicado numa edição em capa cartonada, pela Texto, numa tradução de Manuel Santos Marques.
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