Memórias à mesa de um café
Um dia um cowboy disse-lhe:
“Não é assim tão fácil escrever sobre coisa nenhuma”
Foi num sonho. Ou, como Patti Smith depois descreveu, no momento que estava ela a entrar num sonho e ele, reclinado, numa cadeira, a roçar a parede de um café… É assim, a escrever (aparentemente) sobre coisa nenhuma, que Patti Smith nos convida a entrar num segundo livro de memórias. Sucessor de Apenas Miúdos, no qual centrava o corpo de recordações nos tempos em que partilhou o seu dia a dia com o fortógrafo Robert Mapplethorpe (que foi o autor daquela foto icónica que vemos na capa do álbum Horses, de 1975), M Train abre horizontes a outros tempos, vivências e protagonistas. E, apesar de nos transportar por geografias variadas, toma o lugar de um pequeno café, em Manhattan, como ponto de partida.
O Café ‘Ino… Era ali que, sob quatro ventoinhas de teto, Patti Smith tomava o pequeno almoço. Sempre o mesmo: uma tosta de pão escuro, um pires de azeite e uma chávena de café. Mas naquela manhã, além do cozinheiro mexicano e de Zak, o empregado, Patti Smith não vê mais ninguém. São nove da manhã, o frio que começa a chegar lembra que está já em novembro… E quando Zak serve o café conta que aquele será o último que lhe serve. Porque, ali chegado e após anos a fio a ali trabalhar, vai agora abrir um café de praia… A notícia desencadeia a primeira viagem no tempo. E Patti Smith recorda então a chegada a Nova Iorque, os outros cafés onde ia quando o ‘Ino ainda não existia, os lugares onde habitou e, depois de conhecer Fred ‘Sonic’ Smith, com quem casaria, um novo momento de partida que a levaria a Detroit.
E assim, aparentemente a falar de coisa nenhuma, mas acabando afinal a evocar memórias, lugares e as suas vivências, Patti Smith percorre a primeira das muitas viagens que M Train nos dá a conhecer, poucas páginas mais adiante conduzindo-nos entre paisagens da Guiana Francesa, em busca de ecos sugeridos pelo que lera na escrita de Jean Genet.
Esta constante viagem entre lugares, este caminhar num presente habitado por memórias de artistas (sobretudo escritores) e, sobretudo, uma presença marcante do percurso que, durante anos, talhou lado a lado com Fred ‘Sonic’ Smith, caracterizam o tutano de um livro que não será exatamente literatura de viagens nem a mais canónica das autobiografias. Mas junta as duas ideias, mostrando uma (já conhecida) relação com os ecos do que ficou daqueles que já nos deixaram. E, entre referências a Herman Hesse, Mishima, Roberto Bolaño, Sylvia Plath, Ryunosuke Akutagawa, Frida Khalo, Boris Pasternak ou Tolstói, histórias de Tânger, Tóquio, Rockway Beach ou Los Angeles, com o Café ‘Ino como refrão que tudo une como lugar que chama essas vivências à reflexão antes da escrita, M Train mostra que, ao contrário do que o cowboy sugerira no sonho, a escrita não era afinal sobre coisa nenhuma.
“M Train”, de Patti Smith, está publicado entre nós pela Quetzal, numa tradução de Helder Moura Pinto.
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