Pocahontas: o mito que o cinema ajudou a perpetuar
Texto: NUNO GALOPIM
Passam esta semana 400 anos sobre o momento em que Pocahontas, a filha do chefe Powatan (que liderava um conjunto de tribos unidas pela língua algonquina e residentes na região que corresponde ao atual estado da Virgínia), chegou a solo britânico, onde passaria o último ano da sua vida. Com uma data de nascimento que se crê ter ocorrido por volta do ano 1596, tinha na verdade por nome Matoaka, já que Pocahontas não foi mais do que uma designação que lhe foi depois atribuída pelo espírito alegre que mostrava nos dias de infância.
O factos da sua vida anterior à chegada a Inglaterra, em junho de 1616, não são claros e, certamente, não correspondem à visão romanceada que começou por surgir em livros publicados no século XIX e que o cinema, mais tarde, também veiculou. O facto de ser encarada como uma princesa índia deve-se mais à forma como foi apresentada quando chegou a Inglaterra do que ao estatuto que teria como um entre os muitos filhos do chefe Powathan. É frequentemente afirmado que seria a sua filha favorita e que terá tido um papel determinante no poupar da vida de John Smith, um soldado inglês que integrava a primeira comunidade britânica instalada nas margens do Rio James em 1607 e que, capturado pela sua tribo, assim escapou da morte por um triz.
Ao contrário do que as visões romanceadas depois mitificaram, é altamente improvável que tenha havido um relacionamento de Pocahontas com John Smith, sendo mais certo que o terá feito amigo e visto regularmente nos tempos em que o inglês viveu entre os índios. Mais tarde, uma vez devolvido ao forte (que corresponde à mais velha fundação da atual Jamestown), Smith e os seus companheiros receberam frequentes visitas de Pocahontas e outros da sua tribo, que levavam comida e outras provisões aos primeiros colonos.
Pocahontas, já como Rebecca Rolfe, num desenho de 1616
Uma guerra que então eclodiu entre colonos e nativos conduziu à captura de Pocahontas em 1613, o seu percurso de vida acabando por fazê-la tomar o lado dos ingleses, acabando mesmo por casar em 1614 com um mercador, John Rolfe, de quem teria um filho. Depois de convertida ao cristianismo e casada, passaria a usar o nome Rebecca Rolfe. Em 1617, teria então 22 anos, Pocahontas adoece subitamente no momento em que se preparavam para regressar e morre ainda em Inglaterra.
O seu nome está longe de ser desconhecido entre nós hoje em dia graças à forma como a sua vida foi alvo de abordagens algo romanceadas que começaram a surgir em textos como Travels in the United States of America (1803), de John Davis, ou The Indian Princess (1808), de James Nelson Barker, este último uma primeira ficção criada em seu redor, na forma de uma peça de teatro.
O cinema visitou a sua memória pela primeira vez em 1924 em Pocahontas and John Smith, de Bryan Foy. A perpetuação, pela ficção, de uma ideia de romance entre Pocahontas e John Smith, mesmo não morando entre as certezas de que nos falam os livros de história, é contudo uma marca até aqui presente na história da sua representação no grande ecrã. E se o filme de 1924 retomava a sugestão chegada dos romances do século XIX, um segundo filme, em 1953, aprofundava mais ainda essa ideia. Realizado por Lew Landers, Captain John Smith and Pocahontas, com algumas sequências rodadas na Virgínia, passou contudo longe das atenções e teve edição em DVD apenas nos mercados norte-americano e canadiano.
“Captain John Smith and Pocahontas” (1953)
Um destino bem diferente teve a adaptação desta mesma visão romanceada pela Disney que, com Pocahontas (1995), de Mike Gabriel e Eric Goldberg, assinalou um dos seus episódios de um período de grandes sucessos que reanimaram a vitalidade do departamento de animação dos estúdios na década de 90, juntamente com títulos como A Bela e O Monstro, Aladdin ou O Rei Leão. Em 1998 a Disney criou a sequela Pocahontas II: Journey to a New World, apenas para o mercado de vídeo.
Na sequência do sucesso de Pocahontas, um novo filme de imagem real, Pocahontas: The Legend (1999), de Danièle J. Suissa, teve carreira discreta, quase invisível, conseguindo contudo conhecer edição em DVD em alguns mercados europeus.
Coube contudo a Terrence Malick criar, em O Novo Mundo (2005), aquela que representa a mais cativante de todas as representações de Pocahontas no cinema. Se bem que fiel à visão romanceada da ligação entre a jovem índia e o capitão inglês, O Novo Mundo desenha um retrato realista (mesmo poético) do contexto em que a narrativa ocorre, sublinhando um interessante contraste entre os jogos de placidez e harmonia que correspondem aos espaços de vida das tribos locais e o progressivo mergulho em situações de desequilíbrio, desconforto e inquietude que chegam com os colonos e os espaços que ali tomam como seus. O filme nasceu de um trabalho de recriação exigente que obrigou, por exemplo, muitos dos atores e figurantes a ter aulas da língua das tribos autóctones de então. A rodagem ocorreu em volta de um afluente do Rio James, na verdade não muito longe do local onde parte da ação de facto aconteceu. O forte dos colonos foi construído segundo dados colhidos por evidências arqueológicas.
De então para cá Pocahontas não regressou ainda ao grande ecrã. Mas tarda ainda o momento em que o faça seguindo a realidade e não o mito. Porque até aqui, e apesar da quantidade expressiva de textos publicados sobre si e o seu tempo, o cinema não pareceu ainda interessado em escapar às visões romanceadas que a literatura do século XIX resolveu criar para perpetuar o nome da jovem filha de um grande chefe índio.
Interessante!
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