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Os dez melhores filmes de David Cronenberg

Seleção e textos: NUNO CARVALHO

Nos 50 anos de carreira de David Cronenberg, aqui ficam dez dos melhores filmes de um cineasta que fez um longo caminho em direção à respeitabilidade e cuja obra lhe valeu o adjetivo “cronenberguiano”, com peso muito idêntico ao que se associa aos qualificativos lynchiano ou kafkiano.

1.º “Naked Lunch” (1991)
No mais inventivo dos seus filmes, David Cronenberg não tentou “adaptar” a novela infilmável de 1959 de William S. Burroughs, utilizando-a antes como fonte secundária e centrando-se na figura do próprio escritor. Enquanto o livro é acima de tudo uma mensagem antidrogas e um guia sobre o inferno da dependência de heroína, o filme é um objeto compósito centrado essencialmente nas metáforas da escrita e dos tormentos do processo criativo. Naked Lunch é mesmo um festim alucinatório em que as fronteiras entre realidade, imaginação e delírio estão fundidas, correspondendo a uma espécie de “realismo paranoide” caro a ambos os autores e que traduz, como escreveu Gary Indiana no ensaio que integra a edição da Criterion do filme, “a sensação de que cada interação humana contém a possibilidade do homicídio”. Um filme bastante profético em relação ao nosso tempo, em que o outro é cada vez mais visto como uma entidade insuportável que simbolicamente se deseja obliterar.

2.º “Irmãos Inseparáveis” (1988)
Inspirado numa história real “mais estranha do que a ficção”, Irmãos Inseparáveis (Dead Ringers) retrata a condição de dois irmãos gémeos idênticos, ginecologistas, e que têm uma relação de extrema dependência em circuito fechado. Quando um deles se apaixona por uma paciente, esse circuito é quebrado, mas o amor por uma pessoa “diferente” revela-lhe que não pode ter com ela a mesma relação de simbiose que tem com o irmão. Como bem disse Chris Rodley, este filme “tem pouco a ver com gémeos ou ginecologia”. Mesmo quando se centrou na visceralidade mais gráfica, Cronenberg sempre a utilizou como metáfora da desintegração mental. E Irmãos Inseparáveis é uma meditação melancólica sobre a ansiedade e o terror da separação psicológica e espiritual. Uma vez mais, o realizador canadiano aposta nos sentidos duplos, elaborando uma mórbida mas bela metáfora, neste caso sobre a ansiedade de separação na sua vertente mais angustiante. Jeremy Irons interpreta os dois protagonistas.

3.º Crash (1996)
O sexo que é representado em Crash correspondia, para J.G. Ballard, o autor do livro em que Cronenberg se baseia, a uma antecipação da futura psicologia humana, que seria essencialmente psicopatológica. O filme, tal como o livro, é uma metáfora sobre a alienação sexual e a crescente busca de experiências extremas e bizarras em busca de uma excitação sexual que já não responde a estímulos “banais” e procura cada vez mais no “esquisito” a fonte de estimulação erótica. Através da história de um pequeno grupo de pessoas que têm como fétiche sexual os acidentes de viação e os ferimentos deles resultantes, Cronenberg fala de um mundo de indivíduos desligados, afetivamente zombificados e em que a única possibilidade de autêntica interação é a relação sexual no seu aspeto mais antirromântico e material, como convém a uma era de pessimismo antropológico e descrença na metafísica do amor.

4.º Uma História de Violência (2005)
Este é um dos mais atípicos filmes de David Cronenberg. No entanto, mantém as impressões digitais do realizador. Vagamente adaptado da novela gráfica de 1997 de John Wagner e Vince Locke, Uma História de Violência centra-se na personagem de Tom Stall (Viggo Mortensen), um homem que vive uma pacata vida com a mulher e os dois filhos numa pequena cidade do estado do Indiana quando essa paz é ameaçada por dois perigosos criminosos que tentam assaltar o bar de que é dono. Tom acaba por matá-los e torna-se um herói mediático, mas essa inesperada popularidade atrai à cidade um mafioso (Ed Harris) prestes a desvendar o seu passado obscuro. O título do filme tem várias leituras, na medida em que se refere tanto ao historial de violência escondido do protagonista como à própria “história de violência” do Estados Unidos e mesmo da humanidade. Assim como noutros filmes Cronenberg falou do potencial psicótico que existe em todos nós, aqui fala da violência adormecida no fundo de cada ser humano e que pode ser despertada de forma inesperada e brutal, quanto mais não seja por uma necessidade de sobrevivência e proteção dos que mais amamos.

5.º “Spider” (2002)
Adaptado do romance de 1990 de Patrick McGrath, Spider é um psicodrama de contornos freudianos sobre a psicose infantil e a teia emaranhada de memórias fragmentárias de um acontecimento trágico. A história segue a personagem epónima (Ralph Fiennes), um homem esquizofrénico que é recebido numa casa de acolhimento no East End londrino, após ter estado internado num hospital psiquiátrico durante duas décadas. De regresso aos espaços da sua infância, Spider rememora alguns dos momentos-chave da sua vida familiar, embora a sua mente esteja toldada pela doença. Um thriller psicológico sobre a ambivalência do amor, que aqui toma a forma literal da mãe boa e da mãe má freudianas, numa objetivação magistral de um conceito psicanalítico clássico. Miranda Richardson interpreta duas personagens que na verdade são uma só, mas que a mente sensível e vulnerável do jovem Spider divide em duas entidades distintas, numa espécie de malograda tentativa de manter o amor materno puro e intacto.

6.º “A Mosca” (1986)
O mais kafkiano dos filmes de Cronenberg (há aqui ecos claros de A Metamorfose), A Mosca é essencialmente uma metáfora sobre a solidão da doença e o seu carácter transformador e absurdo, ao ponto de nos tornar repulsivos para os outros e de nela não encontrarmos nenhum sentido redentor. Livremente baseado no conto homónimo de 1957 de George Langelaan, A Mosca centra-se na personagem de Seth Brundle (Jeff Goldblum), um cientista que inventa uma máquina de teletransporte e que um dia, ao fazer a experiência de transmissão de matéria através do espaço, acaba por ver o seu ADN fundido com o de uma mosca que acidentalmente entrou no aparelho, dando início a uma gradual transformação do seu corpo no de um insecto. A certa altura o protagonista diz: “Sou um insecto que sonhou que era um homem e adorou esse sonho. Mas agora o sonho acabou e o insecto despertou.” Para Cronenberg, o humanismo é um ilusionismo, e só a lucidez da “doença” nos permite ter consciência da falsidade dessa utopia bem-intencionada.

7.º “Experiência Alucinante” (1983)
Como é dito na sinopse da edição portuguesa em DVD de 2002 de Experiência Alucinante (Videodrome), “o invasor diabólico de David Cronenberg é um programa televisivo que seduz e controla os telespectadores”. E é mesmo de um “invasor diabólico” que se trata, não no sentido sobrenatural, mas psicológico. Os efeitos perigosos e perversos dos media sobre a mente é o tema principal deste filme que cruza ficção científica e terror e cujo enredo se centra num diretor de um pequeno canal de televisão por cabo que transmite um programa que mostra violência real (espécie de snuff TV) e cujo sinal é pirateado através de satélite de uma paragem aparentemente remota. James Woods interpreta o diretor do canal, que se vai sintonizando com uma realidade cada vez mais alucinatória. Videodrome conta ainda com Debbie Harry no papel da namorada do protagonista e surpreendentes efeitos visuais de Rick Baker (Star Wars: Episódio IV – Uma Nova Esperança/Ed Wood), sendo claramente inspirado nas teorias de Marshall McLuhan.

8.º A Ninhada (1979)
A criatividade é uma marca distintiva de toda a filmografia de David Cronenberg, e A Ninhada (The Brood) é um dos filmes mais criativos escritos pelo realizador. De resto, é uma metáfora negra e aterradora da própria criatividade, aqui sob a forma de uma “natividade” abominável. A história centra-se na relação entre Nola (Samantha Eggar), uma mulher mentalmente doente, e o Dr. Hal Raglan (Oliver Reed), um psiquiatra/psicólogo que cumpre a sua função ajudando a sua paciente a expressar a raiva reprimida. Uma raiva que a fez adoecer e cuja origem se encontra na relação patogénica com uma mãe psicologicamente agressiva e um pai fraco e incapaz (mas não serão esses maus-tratos em parte fruto do delírio?). É sabido que por vezes o sucesso de uma psicoterapia pode ser trágico (alguns pacientes de Jacques Lacan, por exemplo, depois de obterem uma cura psicanalítica, suicidaram-se), e no caso de A Ninhada esse sucesso clínico traduz-se num fenómeno original e assustador: como resposta psicossomática extrema, Nola gera literalmente no ventre filhos da sua raiva, criaturas sinistras ligadas à sua mente e que espalham o terror contra quem ela vê como uma ameaça. Haverá melhor metáfora sobre o poder criativo e os seus perigos?

9.º Scanners (1981)
A sétima longa-metragem de David Cronenberg contou com duas semanas de pré-produção e um guião anorético, sendo, como disse John Costello no livro da série The Pocket Essentials que dedicou ao cineasta canadiano, “um milagre que tudo encaixe tão bem”. Com um final otimista, ao contrário do que sucedera em A Ninhada (The Brood, 1979), realizado dois anos antes, numa fase de pessimismo e complicações pessoais, Scanners toma a forma de um filme de ação e espionagem, centrando-se nas “curiosidades telepáticas” conhecidas como Scanners, indivíduos que conseguem sondar os pensamentos de outros. Inicialmente conhecido como “o filme das cabeças que explodem” (é famosa a cena da conferência em que a personagem de Michael Ironside rebenta literalmente a cabeça de um voluntário numa sessão demonstrativa das suas habilidades), Scanners exibe já muitas das obsessões de marca de Cronenberg, tais como o tema do “cientista extraviado ou as inesperadas capacidades físicas trazidas por terapêuticas não convencionais” (nas palavras de Chris Rodley). Este filme levou John Carpenter a dizer que Cronenberg era melhor do que o resto dos seus contemporâneos juntos.

10.º “Mapas para as Estrelas” (2014)
Num tempo cínico como o atual, em que ser educado e delicado é visto como uma fraqueza (“it takes strength to be gentle and kind”, já dizia Morrissey), não deixa de ser curioso que a única personagem de Mapas para as Estrelas que revela alguma inocência e sensibilidade seja precisamente a da jovem psicótica com passado obscuro interpretada por Mia Wasikowska. Porque esta sátira negra sobre o lado decadente de Hollywood a que David Cronenberg deu também a forma de conto exemplar (no sentido de admonitório do mal que se esconde por detrás do brilho enganador de algumas estrelas do grande ecrã) é um desfile de figuras calculistas, narcísicas, niilistas e desalmadas que surgem como sintoma de uma época que busca mil e uma “terapias” para males muitas vezes sistémicos ou mais ou menos delirados que nunca poderão ser resolvidos enquanto vivermos como partículas dissociadas do todo. Daí que Cronenberg encene através de um microcosmos de Hollywood aquela que é a grande caixa de Pandora do nosso tempo: o narcisismo (por vezes perverso) que já não tem sanção social porque se tornou um modelo civilizacional. A personagem central do filme, Havana Segrand (Julianne Moore), uma starlet que anseia relançar a sua carreira num remake de um melodrama dos anos 60 em que interpretará o papel que tornou famosa a sua mãe, exemplifica bem a neurose narcísica de quem vive obcecado com a promoção a todo o custo da sua imagem.

3 Comments on Os dez melhores filmes de David Cronenberg

  1. No geral, a lista está bem conseguida, interessante e bem escrita. Conheço minimamente a obra de Cronenberg e a lista contempla os períodos mais importantes da sua filmografia. A minha única objecção consiste na ausência de “Eastern Promises” que, na minha opinião, é importante em qualquer lista que se faça acerca deste cineasta. No entanto, e dado o material cinematográfico em si mesmo, é sempre subjectivo. Por fim, viva a discussão e as opiniões. É o que interessa. Mais listas destas se aguardam 🙂

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  2. Faltou Um Método Perigoso, nome que levou no Brasil o filme sobre Freud e Jung.

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    • Sim, pensei em incluí-lo, mas, em comparação com outros filmes do realizador, e ainda que o considere muito interessante, não me pareceu na altura que coubesse no top 10. Mas é claro que uma lista deste género, se bem que tenha de integrar alguns filmes “obrigatórios”, é sempre um tanto subjetiva e pessoal. Obrigado pelo comentário. NC

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