“Diamond Dogs”: Visões de distopia e desolação
Texto: NUNO GALOPIM
Em finais de 1973 David Bowie começou a desenvolver dois projectos para musicais de palco que acabaram por nunca se concretizar. Um deles seria uma versão longa da história de Ziggy Stardust, abandonada depois por se pensar ser um passo errado para trás. O outro, uma adaptação do romance 1984, de George Orwell, cuja realização acabou impedida pela não cedência de direitos por parte da viúva do escritor.
Entusiasmado pelas ideias que entretanto havia desenvolvido, Bowie acabou por criar a sua visão distópica de uma outra cidade projectada no futuro, na qual uma série de referências americanas foram por si incluídas. Esta cidade de sombras, tensão e desilusão acabaria por ser o cenário no qual projectou as canções de Diamond Dogs, álbum que assinala franca vontade de partir para lá dos domínios estilísticos associados ao glam rock (esgotados por si em Aladdin Sane e, entretanto, feitos moda descartável por inúmeras novas bandas oportunistas), experimentando um sentido dramático que teria evidentes herdeiros, mais tarde, entre os partidários do rock gótico.
Na verdade, apenas Rebel Rebel permite estabelecer uma ponte com o passado imediato em Bowie (esta, contudo, foi uma das duas canções que “salvou” do musical dedicado a Ziggy entretanto cancelado, daí a afinidade).
Apesar de projectado num futuro eventual, o álbum representa uma visão crítica da vida urbana dos anos 60 e 70. Bowie chegou a descreve-lo como uma visão muito inglesa de um sentido de vida apocalíptico e reconheceu que entre as canções residiam marcas de incidentes da vida financeira na Nova Iorque de então.
O disco enfrenta, ainda, pela primeira vez na escrita de Bowie, referências concretas ao consumo de drogas. Musicalmente é um disco de reinvenção de ideias, e revelador de sinais de atenção de Bowie para com as outras músicas do seu tempo. 1984, canção criada antes das demais composições, revelava um interesse pelo emergente fenómeno disco (e não esconde uma certa proximidade, na arquitectura rítmica, com o tema para o filme Shaft, recentemente gravada por Isaac Haayes.
Liricamente reflecte o início de uma relação fragmentária com a escrita, em parte influenciada pela descoberta de técnicas usadas por William S. Burroughs, que Bowie tinha entrevistado para a Rolling Stone um ano antes. Apesar de ter dividido a crítica na altura, hoje é considerado um dos mais importantes álbuns na discografia de Bowie.
Apesar de Bowie ter “oficialmente” fechado o capítulo Ziggy Stardust no início do verão de 1973, Rebel Rebel representa, como acima se referiu, a derradeira expressão direta de uma forma de compor canções em tudo associada ao movimento glam rock que ele mesmo ajudara a edificar. Apesar da presença determinante de um riff de guitarra na construção da canção, esta foi a sua primeira gravação em vários anos a não envolver o guitarrista Mick Ronson, ficando a guitarra por conta do próprio David Bowie.
A letra segue caminhos próximos de outras das canções desta etapa na obra de Bowie, sugerindo leituras que levantam questões de identidade de género, afinal um dos focos maiores na afirmação de Ziggy Stardust dois anos antes (e da consequente elevação de Bowie a um patamar de estrelato global). Rebel Rebel foi editado como single em fevereiro de 1974, três meses antes da chegada do álbum.
O tema-título do álbum Diamond Dogs acabou por conhecer edição no formato de single em junho de 74. A canção traduz a alma assombrada do álbum e projeta toda essa carga numa personagem: Halloween Jack, que caminha entre a desolação de uma Manhattan pós-apocalítica. Canção longa, mais próxima de expressões proto-punk que dos ecos do glam do qual decididamente já se distanciara, Diamond Dogs não foi um estrondoso sucesso enquanto single, mas tornou-se com o tempo num dos clássicos desta etapa.
1984 seria depois, em julho do mesmo ano, o terceiro e último single a ser extraído deste álbum.
Deixe uma Resposta