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“Young Americans”: a visão ‘plastic soul’ de David Bowie

Texto: NUNO GALOPIM

O primeiro álbum de David Bowie profundamente influenciado pela música soul e pelo funk chegou às lojas de discos em 1975. Agora é um dos episódios de uma nova caixa que cobre essa sua etapa norte-americana.

Durante a sua residência no Tower Theatre (o palco em Filadélfia onde seria registado o seu primeiro disco ao vivo), em Julho de 1974, em plena Diamond Dogs Tour, David Bowie entrou pela primeira vez nos míticos Sigma Sound Studios, a “casa” do som negro que caracterizava a cidade. A sua antiga paixão pelo rhythm’n’blues, que podemos recordar nos singles algo invisíveis que editou antes de 1966, ganhou novo alento e abriu caminhos para uma nova visibilidade. Uma paixão alimentada também por uma sucessão de visitas ao mítico Apollo Theatre, onde deverá ter visto praticamente todas as grandes atuações que por ali passaram entre finais de 1972 e 74.

Pediu então a Coco Shwab (a sua assistente pessoal) uma lista de novos discos de referência na música negra, entre os quais títulos da emergente cena disco sound. As ideias já de certa forma sugeridas no tema 1984, do álbum desse mesmo ano Diamond Dogs, ditavam o rumo de um novo disco que, meses depois, ganhou forma nesse mesmo estúdio em Filadélfia, contando novamente com Tony Visconti na produção e com um distinto lote de músicos, entre os quais o guitarrista Carlos Alomar e o baixista Willie Weeks.

As sessões foram rápidas, gravado quase todo o álbum no curso de apenas duas semanas. Este foi desde o início um disco nocturno, gravado sempre pela noite fora numa fase da sua vida que Bowie vivia com as horas trocadas. Numa etapa posterior, já com o disco praticamente gravado, passou uma temporada em Nova Iorque. E aí aprofundou uma amizade com John Lennon que, meses antes, havia conhecido pessoalmente em Los Angeles. Juntos entraram em estúdio (nos míticos Electric Ladyland), trabalhando uma versão de Across The Universe (um original dos Beatles) e num inédito, Fame, que viria a dar o primeiro número um americano a Bowie. Os temas, naturalmente, entraram à última hora no alinhamento final de Young Americans, tornando-se peças fundamentais do álbum.

O disco acabou por refletir plenamente a vontade de abordar a música negra norte-americana estimulada pela passagem por Filadélfia, abrindo novos caminhos na obra de Bowie com continuidade, mais tarde, em álbuns como Let’s Dance (1983) ou Black Tie White Noise (1993), em conjunto representando este trio um corpo de trabalho no qual não só ficaram registadas as influências primordiais do R&B da juventude de Bowie como, e isto sobretudo no álbum de 1993, escutaram um relacionamento com o saxofone (o primeiro instrumento que o músico tocou) que se voltaria a manifestar, agora em mais evidente clima jazzy, no single inédito Sue (or in a Season of Crime) lançado em finais de 2014.

O tema Young Americans, que conta entre a lista de colaboradores com o nome de Luther Vandross, foi escolhido como cartão de visita, confirmando que a versão do clássico de Eddie Floyd Knock on Wood – em gravação ao vivo – lançada em single meses antes não fora um flirt pontual, mas antes um sinal de aviso para uma mudança em curso. A designação “plastic soul” começou então a surgir nas palavras do próprio David Bowie como forma de se referir a esta sua abordagem ao universo das heranças do R&B. Uma abordagem com um cunho pessoal talvez mais evidente ainda no soberbo Fame, que parte de um riff de Carlos Alomar e define um espaço ritmicamente anguloso que sabe usar as breves presenças de silêncio em seu favor.

Concretizava-se também assim uma saída possível para o que havia sido a era Ziggy/Diamond Dogs. O próprio Bowie explicou (escutar link para entrevista mais abaixo) que, sendo a sua atenção algo que se esgota uma vez terminada uma tarefa ou obra, a vontade de mudar é algo com que há muito convive a cada nova etapa. A vontade em não ficar agrilhoado aos ecos de Ziggy Stardust talvez tenham estimulado assim esta partida para terrenos tão distantes.

O álbum foi bem recebido, sobretudo nos EUA, onde Bowie se viu elevado do estatuto de estrela de culto a figura de primeira linha do showbiz. Young Americans é um disco não unânime entre admiradores de Bowie. Mas, como os seus demais títulos de 70, teve imediato impacte junto dos seus contemporâneos. Já agora vale a pena recordar que os Roxy Music mostraram igual paixão pelas referências da música negra no contemporâneo Love Is The Drug. E que Rod Stewart fez o mesmo em Atlantic Crossing

A história de Young Americans conheceu um episódio novo este ano quando, integrado na segunda caixa antológica – que cobre o período entre 1974 e 1976 – teve finalmente edição o álbum The Gouster, que estava pronto a editar quando Bowie o arquivou, dele partindo alguns temas, sob novos arranjos, para o alinhamento de Young Americans, outros ficando por ali. The Gouster permite um olhar sobre o que representa uma etapa intermediária entre as primeiras visões daquilo a que Bowie chamaria depois “plastic soul” e o álbum final que, mais depurado (e com as contribuições de John Lennon) chegaria ao mercado em 1975.

O álbum acaba de ser reeditado através da caixa Who Can I Be Now (1974-1976) que a Warner editou em finais de setembro.

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