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Um uivo para não esquecer nunca o Som da Frente

Texto: NUNO GALOPIM

O documentário de Eduardo Morais sobre António Sérgio correu o país em exibições nas mais variadas salas. Hoje à noite, quando passam sete anos sobre do dia em que o grande radialista nos deixou, a RTP 2 faz a sua estreia televisiva.

Eduardo Morais diz que nos últimos anos se tem “sentido um pequeno detective da música portuguesa”, acrescentando logo que “limitado aos meios” que o circundam. Realizador, autor de um documentário sobre o radialista António Sérgio que nos últimos meses tem sido apresentado em sessões de cinema em vários pontos do país, um pouco como no formato de uma digressão, confessa que o autor de programas míticos como o Som da Frente ou O Grande Delta era alguém “com quem adoraria ter conversado”. Por haver “tão pouco sobre ele, a figura torna-se mais misteriosa e a curiosidade engorda”, explica, justificando assim o que o levou a fazer um filme sobre uma das mais marcantes figuras da história da rádio em Portugal. Eduardo não consegue “precisar o momento exacto que o click para o Uivo se deu”, admitindo que “foi mais uma vontade crescente de poder pesquisar algo mais sobre a importância da pessoa e poder, uma vez mais, partilhar no fim” o que aprendera “com milhares de pessoas”.

Fazer o filme foi um processo de descoberta da figura e obra de António Sérgio. Nele gostou de descobrir “a ética de trabalho e o modo hedonista como levava a vida”, revelações que toma como “uma autêntica lição” que este seu “melhor amigo imaginário durante o ano passado” lhe passou. Convém sublinhar, apesar de já estar claro nas entrelinhas, que nunca se chegaram a conhecer pessoalmente. “O facto de, ao longo de toda a sua carreira profissional ter levado sempre ao seu público aquilo em que acreditava ser o fresco e eminente, custou-lhe por exemplo em 1978, o seu cargo como editor na Valentim de Carvalho”, recorda, referindo o “caso” do disco pirata Punk Rock 77. “Curiosa e subentendidamente no documentário, é referido que foram necessárias três pessoas para preencher o espaço do António Sérgio, após a edição do célebre Punk Rock 77”, observa. E lembra que, “mesmo tendo recebido cargos de maior ou oportunidades de um salário superior ao seu, o António Sérgio sempre optou por estar mais próximo do público que o seguia, pois a fidelidade criada não poderia ser quebrada por uma razão menos humana”. Em suma: “nunca é o artista que cria um mito, um mito é sempre criado pelo próprio público”, remata.

Perguntei a Eduardo Morais sobre a comparação tantas vezes feita entre António Sérgio e o radialista britânico John Peel. “Curiosamente”, responde, foi uma questão que tentou “deixar de lado no documentário”. Mas acrescenta que “a comparação entre os dois é perfeitamente justa, tal como seria justo entre o Sérgio e um descobridor numa rádio no Ruanda, por exemplo. A única diferença prende-se com a escala de acesso que cada um tinha naquela altura à novidade”. John Peel, continua, “sendo o vizinho geográfico de uma música e de um espírito juvenil contra-cultural que estava a borbulhar nas décadas de 60, 70 e 80, tinha exatamente a mesma força de vontade que o Sérgio. Só que o alcance do primeiro é inegavelmente maior do que o segundo e, consequentemente o terceiro. A descoberta, o chamado ‘ter ouvido, e a emancipação dos novos sons é comum ‘aos três exemplos’, e isso é sem dúvida o mais importante”, reconhece.

Sobre o modelo de apresentação do filme em digressão por espaços espalhados pelo país fora, Eduardo assinala desde logo que “estamos a falar de documentários que têm um orçamento que alguns fotógrafos não aceitariam nem para uma simples sessão”. Tal como com outros filmes seus, como Meio Metro de Pedra ou Música em Pó, fez questão de, “assim que o documentário estivesse terminado, criar um circuito de exibições por todo o país”. Com o primeiro filme tinha feito “dois circuitos de cerca de 20 a 30 exibições cada, e já no Música em Pó apenas um de 15, sendo que em todos são criadas exibições pontuais posteriores”. Com o Uivo “passou-se exatamente o mesmo, só que talvez só agora é que chegou aos olhos de algumas pessoas, pelo alcance mediático atingido”. O facto de se “deslocar a Bragança, a Portalegre, a Alpedrinha, a Loulé, etc. com o documentário debaixo do braço”, e de em cada localidade “ter não só conseguido criar um público que gosta” do seu trabalho e dos mesmos temas de que gosta, como de poder “no fim de cada exibição conseguir criar uma conferência onde a troca de ideias é o seu leitmotiv, é de uma gratificação impagável”.

O realizador aponta então que “um dos grandes problemas do cinema e da música em Portugal é mesmo esse: estão demasiado presos umbilicalmente a uma Lisboa e a um Porto, e tudo o que fuja para lá de Alverca ou Santa Maria da Feira já não vale a pena”. É por isso que diz que “o Uivo foi, segundo as comparações com os dados recentemente lançados pelo ICA, talvez o 10º filme mais visto em Portugal em 2014, e por não preencher certos padrões não é tido em conta”. E “tudo isto é um ciclo vicioso”, remata.

E quem é o público que tem visto o Uivo? “Curiosamente”, observa, com Uivo teve “uma separação de públicos que nunca tinha notado nas exibições dos documentários anteriores”. Por um lado, Eduardo explica que o filme tem “um público que cresceu e se formou musicalmente através do António Sérgio, que viveu intensamente os anos 80, e que, em cidades menos nevrálgicas levava raspanetes dos pais quando era novo por ficar acordado até fora de horas a ouvir os programas pois era a única forma de ouvir aquela música”. Por outro lado há “uma juventude mais atenta e interessada em descobrir o senhor que mostrou ao país uma música à época nova, e que influencia as bandas de que eles gostam”. Quando “o segundo público impera”, Eduardo diz que gosta sempre “de dar o exemplo que é referido por Jon Marx no documentário: nos anos 80 o que nós hoje chamamos de indie era conhecido como Som da Frente”. É verdade, de facto.


A RTP 2 faz hoje a estreia em televisão deste documentário às 23.13.

O filme Uivo está ainda disponível num DVD que acompanha o livro O Uivo da Matilha: Tributo a António Sérgio e à Rock’N’Roll Radio.

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