Os dez melhores álbuns de Blake & Mortimer
Seleção e textos: NUNO GALOPIM
Neste 2016 em que se assinalam os 70 anos do nascimento das aventuras de Blake & Mortimer, criação de Edgar P. Jacobs que surgiu pela primeira vez no número um na revista Tintin, em 1946, há um novo álbum a caminho. Com o título Le Testament de William S. é assinado por uma equipa que assinou já cinco álbuns (um deles duplo) das aventuras destes heróis que, desde 1996 iniciaram uma nova vida após o desaparecimento do seu criador.
Desde então houve já três equipas a quem a criação dos novos álbuns tem sido confiada. Uma primeira juntando Ted Benoît e Jean Van Hamme, assinou O Caso Francis Blake (1996) e O Estranho Encontro (2001). Com alguns outros colaboradores, diferentes em cada álbum, Van Hamme assinou ainda A Maldição dos Trinta Denários (2 volumes entre 2009 e 2010). Uma segunda, com Yves Sente e André Juillard, criou A Maquinação Voronov (2000), Os Sarcófagos do 6.º Continente (2 volumes entre 2003 e 2004), O Santuário de Gondwana (2008) e O Juramento dos Cinco Lords (2012), sendo responsável também pelo volume que chega em dezembro. Entretanto em 2013 entraram também em cena Jean Dufaux, Antoine Aubin e Étienne Schréder, que nos deram a ler A Onda Septimus.
Há claramente aqui um antes e um depois, raramente tendo os livros pós-Jacobs rivalizado com as suas criações. Os anos têm reafirmado esta como uma das mais marcantes e veneradas das séries clássicas da BD franco-belga, com tramas que recorrem frequentemente a ingredientes de ficção científica e mostram um gosto evidente por thrillers e até mesmo histórias de espionagem.
Aos 70 anos, e com enorme vitalidade no mercado, a série estará em foco nesta reta final do ano. Por isso começamos já a recordar os seus dez melhores livros (agrupando numa mesma entrada aquelas aventuras publicadas com mais do que um volume). Jacobs está naturalmente em evidência. Mas para chegar a um Top 10 houve que chamar também aqui as melhores histórias criadas depois da sua morte.
1. “A Marca Amarela” (1956)
Um caso maior na história da nona arte, a terceira aventura de Blake & Mortimer confirmou em pleno as potencialidades que Edgar P. Jacobs tinha projetado em torno deste universo de ficção originalmente apresentado em 1946 e criou uma narratiava que, como poucas, alia um metódico trabalho de construção visual com detalhe cinematográfico a uma trama num patamar de complexidade narrativo capaz de assimilar elementos não apenas do thriller e do policial mas também pistas com travo sci-fi, que afinal são uma das mais frequentes marcas de identidade desta série. Originalmente apresentada nas páginas da revista Tintin entre 1953 e 1954 e lançada pela primeira vez em álbum em 1956 A Marca Amarela revelou um fenómeno de popularidade em volta desta dupla de personagens, havendo quem recorde como havia, então, quem desenhasse a giz amarelo o “M” da “marca amarela” por paredes e portas de salas de escolas e de bairros habitacionais… E tudo isto muito antes da street art…
A trama centra-se na cidade de Londres e começa por revelar a sucessão de roubos de grande ousadia, que chegam mesmo às jóias da coroa. É aí que Francis Blake é chamado a agir, ao mesmo tempo uma sucessão de acontecimentos acabando por levar o professor Mortimer a reencontrar um velho e polémico livro sobre ondas cerebrais e sua manipulação, que revelarão pistas importantes para a evolução da história.
Esta seria a derradeira aventura de Blake & Mortimer a contar com Ahmed Nasir como personagem secundária. Ao mesmo tempo apresenta as figuras do Dr Septimus e do inspetor Kendall, que apareceriam novamente em futuras histórias.
Jacobs revela aqui fontes de inspiração diversas, uma delas sendo o cinema expressionista alemão dos anos 20. Fritz Lang é um nome a ter em conta em várias frentes, inclusivamente na referência ao “M” do seu filme Matou, de 1931. O trabalho de cor, explorado ao nível da prancha, é uma das marcas de identidade visuais do livro.
2. “O Mistério da Grande Pirâmide” (1954)
Se para criar O Segredo do Espadão o seu autor, Edgar P. Jacobs, teve como um dos focos de inspiração o receio global de que um novo conflito mundial pudesse ocorrer e de como, consequentemente, a ciência e a tecnologia seriam conduzidas no sentido de criar novas armas, já para a segunda aventura de Blake & Mortimer a sua preparação exigiu longos meses de leituras e investigação. Originalmente apresentado nas páginas da revista Tintin entre 1950 e 1952, O Mistério da Grande Pirâmide (que em livro exigiria a publicação da narrativa em dois álbuns) é uma história que cruza os tempos, usando um dispositivo cinematográfico – o flash back – para ir lançando, aos poucos, as raízes antigas de uma trama que emerge no presente da ação. A história é desencadeada pelo facto de um egiptólogo amigo do professor Mortimer o convidar a visitar o Cairo onde lhe mostra um papiro que menciona a existência de uma câmara secreta dentro da pirâmide de Queóps e na qual deverá estar guardado o tesouro de Akenaton, o faraó do final da XVIII dinastia que criara (mas com vida curta) um primeiro culto monoteísta. Jacobs parte dessa suposição para, entre visitas os tempos de Akenatón, lançar uma trama que junta à demanda pela verdade do que aquele papiro sugere a intervenção de uma rede de traficantes de antiguidades, cruzando assim elementos de história, aventura arqueológica e de thriller policial numa aventura que merece um lugar entre as melhores de sempre da nona arte. Às qualidades narrativas – que O Segredo do Espadão já sugeria mas que aqui dão um passo em frente na complexidade – Jacons junta um rigor tremendo na criação das imagens, seja na sequência da visita ao Museu do Cairo ou nos vários desenhos envolvendo hieróglifos (que estudou para os poder representar corretamente e com sentido). Cerca de dois anos após o fim da publicação das pranchas na revista Tintin surgiu um primeiro volume do díptico O Mistério da Grande Pirâmide, o segundo sendo publicado no ano seguinte, em 1955. Em 2010 os dois álbuns tiveram uma edição especial num volume apenas – com o título Le Mystére de la Grande Pyramide Integrale – e que juntava às 106 pranchas uma série de páginas extra com desenhos e esboços, alguns deles inéditos.
3. “O Segredo do Espadão” (1950)
A primeira prancha das aventuras de Blake & Mortimer surgiu em setembro de 1946 na edição inaugural da revista Tintin. Ali se apresentavam as primeiras imagens, personagens e narrativas de uma história que evoluiria ao longo dos anos seguintes, com conclusão conhecida apenas em 1949, após um total de 148 pranchas, que seria publicadas em livro (em dois volumes) pela primeira vez em 1950. Uma nova publicação, dividindo as pranchas em três volumes, surgiria mais tarde, em 1984. E o seu peso histórico, tanto para o universo de Blake & Mortimer como para a própria nona arte, é tal que, em 2014, surgiu uma edição integral num só volume, juntando como extras alguns desenhos inéditos e textos com comentários e memórias. Ainda criada sob ecos da memória recente não apenas de um mundo em guerra mas também do poderio de novas armas entretanto colocadas em cena, O Segredo do Espadão apresenta os heróis criados por Edgar P. Jacobs numa trama que faz bom uso do facto de um deles ser um oficial dos serviços secretos britânicos e o outro um reputado homem de ciência. Como quem diz que a força vale mais se tiver consigo a inteligência, a dupla terá um papel central na tentativa de resistência do mundo livre a uma nova ameaça militar que chega de um estado asiático com sede de poder em Lassa (no Tibete). Com grande parte da ação em zonas do Médio Oriente, a trama inclui elementos de ficção científica (que seriam depois mais presentes em subsequentes aventuras de Blake & Mortimer) na forma de uma arma entretanto a ser desenvolvida contra o Império Amarelo: o Espadão. Este livro (ou livros, se tivermos em conta que o mais frequente é vermos a sua edição em vários volumes) coloca ainda em cena outras figuras que terão papel recorrente em aventuras futuras, nomeadamente o vilão Olrik e Nasir, este último um militar de um corpo britânico na Índia que se tornará numa das figuras mais próximas dos dois heróis em O Mistério da Grande Pirâmide e A Marca Amarela, representando, de certa forma, um eco dos tempos coloniais num universo que, mesmo correndo o mundo, tem epicentro britânico. Em 2014 Yves Sente e André Juillard criaram, no 23º álbum da série, com o título O Bastão de Licurgo, uma prequela dos acontecimentos em O Segredo do Espadão.
4. “O Enigma da Atlântida” (1957)
Apesar de alguns ingredientes de antecipação usados em O Segredo do Espadão, é em O Enigma da Atlântida que Edgar P. Jacobs transporta pela primeira vez as figuras de Blake e Mortimer para os universos da ficção-científica. Originalmente publicada na revista Tintin entre 1955 e 56 e apresentado em álbum em 1957 esta aventura começa nos Açores. Mais concretamente na Ilha de São Miguel, levando os heróis a uma localidade nas imediações das Furnas para tentar compreender um estranho achado geológico. A demanda por respostas acaba por levá-los a um mundo subterrâneo desconhecido onde, na verdade, se revela um achado mitológico: a Atlântida. Na verdade, e depois de um cataclismo, a civilização atlante (tecnologicamente avançadíssima) procurou refúgio no subsolo. Mas desde então, nos mesmos mundos subterrâneos, embora travados por uma grande porta, vive também um povo “bárbaro”. E Blake e Mortimer chegam à Atlântida, precisamente em tempo de eclosão de uma velha conspiração… O que dá maior fôlego ainda a uma narrativa que junta assim, de forma magistral, um “clássico” das mitologias (a de Atlântida), a contemplação da descoberta de um mundo com travo futurista e uma trama com ação intensa. Ao mesmo tempo acaba, com os elementos que aqui coloca em jogo, por “explicar” os misteriosos discos voadores que estavam tão em voga nos anos 50.
5. “A Armadilha Diabólica” (1962)
O professor Miloch, que em S.O.S. Meteoros é o cérebro por detrás da tecnologia que desencadeou os vários momentos de manipulação sobre a meteorologia que habitam a narrativa volta a entrar em cena como o antagonista de Philip Mortimer. Miloch preparou uma vingança que explora a curiosidade do professor que se dirige ao local ao qual o chama uma mensagem, ali descobrindo uma máquina engenhosa: o cronóscafo. Ou, por outras, uma máquina do tempo. O livro, originalmente publicado originalmente nas páginas da revista Tintin em 1960 e 61, acompanha então as viagens que Mortimer ali protagoniza, a primeira levando-o 150 milhões de anos atrás no tempo, à era dos dinossáurios, a segunda à França do século XIV em plena Guerra dos Cem Anos e a terceira ao futuro longínquo, no século LI, no qual Edgar P. Jacobs desenha um fascinante cenário pós-apocalíptico, apresentando-nos imagens de uma revolução em marcha (que toma Mortimer como uma espécie de “messias”), aproveitando a oportunidade para nos contar a história do planeta nos séculos que temos pela frente. E não é coisa nada luminosa, acrescente-se.
6. “S.O.S. Meteoros” (1959)
A primeira aventura de Blake & Mortimer passada em França aposta, como A Marca Amarela, num jogo duplo entre o thriller e condimentos de ficção científica e revela, da parte do autor, uma das mais cuidadas recriações dos espaços que servem de cenário para a ação (que originalmente surgiu na revista Tintin em 1958). São frequentes em artigos ou trabalhos publicados sobre a obra de Jacobs as referências ao trabalho de réperage que o autor fez nas ruas de Paris e das restantes localidades (e estradas) pelas quais passa a narrativa de S.O.S. Meteoros, revelando um rigor realista cinematográfico na busca de espaços para fazer evoluir uma trama de ficção. A história, que reflete os dias de “guerra fria” que então se viviam, cruza um pedido de auxílio de um meteorologista francês ao professor Mortimer com uma rede de espionagem, acabando por revelar que os sucessivos temporais com que a Europa central estavam a ser sovada tinham na verdade origem numa intervenção com fins escondidos e que resultava de uma maquinação tecnológica criada pelo professor Miloch (que surgirá novamente em A Armadilha Diabólica). Além de Miloch o livro coloca em cena as personagens do inspetor Pardier e do professor Labrousse, que voltariam a surgir em volumes posteriores.
7. “O Caso do Colar” (1967)
Apesar de ter ainda concluído o primeiro volume de As 3 Fórmulas do Professor Sato, O Caso do Colar foi na verdade a última aventura de Blake & Mortimer que Edgar P. Jacobs terminou em vida. As 18 primeiras pranchas, originalmente publicadas em 1965 na revista Tintin, foram desenhadas por Gérald Forton, sendo depois retrabalhadas pelo próprio Jacobs para a edição em livro. O argumento é, todavia, todo ele de sua autoria. Esta é uma narrativa essencialmente policial, deixando de lado a dimensão de ficção científica que cruza a maioria das aventuras de Blake & Mortimer. A história recupera um ícone perdido dos tempos do ancien régime, o colar de Maria Antonieta cuja história deu brado antes da revolução. O colar está no centro de uma trama que se desenrola toda ela em Paris, cabendo ao papel na ação das catacumbas e de toda uma rede subterrânea uma das mais evidentes marcas “jacobsianas” desta história.
8. “O Caso Francis Blake” (1996)
de Jean Van Hamme (texto) e Ted Benoit (desenho)
Se, em 1990, a conclusão de As 3 Fórmulas do Professor Sato, pelo antigo colaborador de Edgar P. Jacobs, Bob de Moor, correspondera a uma intervenção direta sob o legado do criador de Blake & Mortimer, já O Caso Francis Blake, publicado em 1996, representava algo de completamente novo e, vale a pena reforçar, ainda não muito comum nesses dias: heróis da BD franco belga teriam vida depois do desaparecimento daquele que os idealizara e desenhada. Coube Ao veterano Jean Van Hamme (que, entre outros feitos, era o criador de Thorgal) e a Ted Benoit (um desenhador claramente herdeiro das tradições da “linha clara” de Hergé, Martin e Jacobs) a criação de um primeiro passo que, sem surpresa, nasceu sob a atenção firme dos admiradores de uma das mais sólidas obras da história da banda desenhada. Com algumas afinidades com a lógica de thriller policial do clássico A Marca Amarela, retomando personagens e despindo da ação a dimensão fantástica que cruzara a esmagadora maioria dos álbuns anteriores, O Caso Francis Blake é, de todas as criações pós-Jacobs, aquela que mais se aproxima narrativa e visualmente dos seus livros. Nota de clara inovação para o facto de, através de uma agente dos serviços secretos, que vive o dia a dia numa aldeia de província, ter surgido aqui a primeira personagem feminina no universo de Blake & Mortimer.
9. “As 3 Fórmulas do Professor Sato”
Volume 1 (1977)
Volume 2, com Bob de Moor, (1990)
A obra que Edgar P. Jacobs nos deixou através das aventuras de Blake & Mortimer cruzou alguns espaços centrais aos universos temáticos da ficção científica. E em As 3 Fórmulas do Professor Sato encontramos não apenas uma expressão de um interesse pelos domínios da cibernética e da robótica, numa trama que nos leva ao Japão e à tentativa de um cientista local em chamar o (colega) Professor Mortimer para que com ele avalie as possibilidades e consequências de uma invenção sua nessa área. Vigiado por um grupo infiltrado no seu laboratório, o professor Sato não imagina que está assim a deixar cair o amigo numa armadilha, lançando uma trama que acabará por nos confrontar comum dos medos mais caros em terreno sci-fi: o do homem perante a inteligência artificial. O livro teve contudo uma génese atribulada, surgindo a sua primeira parte nas páginas da revista Tintin entre 1971 e 1972 e, em álbum, em 1977. A deterioração da saúde de Jacobs e uma desmotivação que viveu nos últimos anos da sua vida – e que poderá ter entre as causas um confronto do autor entre a sua obra e os avanços do trabalho de criação de imagens para a ficção científica no cinema, levaram a que nunca terminasse o volume dois, deixando apenas desenhos inacabados. Depois da morte de Jacobs a conclusão desta história coube a Bob de Moor, um veterano ligado à revista Tintin, que trabalhara já na série Lefranc e que desejara terminar o álbum Tintin e a Alph-Art que Hergé deixara inacabado. O livro surgiria em 1990, ou seja, 13 anos depois do álbum com o volume um e 17 após a conclusão original da sua publicação na revista Tintin.
10. “A Conspiração Voronov” (2000)
de Yves Sente e André Juillard
Estando já em marcha um segundo volume pela equipa que em 1996 reativara a publicação da série, chegou com surpresa a revelação de que um outro par de autores iria ter uma contribuição nestas novas vidas de Blake & Mortimer. Juntavam-se aqui o argumentista belga Yves Sente, com formação essencialmente feita em Chicago e com trabalho também importante assinado como editor. E a seu lado surgia o desenhador veterano André Juillard, com obra publicada desde os anos 70. A trama respira o fulgor de uma história de espiões com forte presença tecnológica (parte da ação coloca-nos no cosmódromo de Baikonur), juntando um ingrediente alienígena. Há aqui uma maior presença de figuras femininas face ao que era a norma nos livros de Jacobs, embora sem o protagonismo que encontrámos noutros dos volumes posteriores a 1996. Mas, mais significativo ainda, é o cruzar do universo de ficção de Blake & Mortimer com um cenário geopolítico mais realista – em concreto a velha URSS e os seus programas espaciais e militares – segundo um modo de diálogo (sob claras liberdades ficcionais) com a história que se repetiria mais tarde em outros volumes. O desenho de Juillard procura mimetizar no traço o sentido de dècoupage e o rigor cénico de Jacobs. E, juntamente com o livro de 1996, este é o que mais se aproxima também do volume de texto dos álbuns originais.
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