“Black Mirror” (3ª temporada): o futuro sorri-nos
Texto: PEDRO MIRANDA
No que diz respeito ao universo, em expansão, das séries televisivas, já se tornou evidente que quando há dedo da Netflix, a obra promete. E antes que sejamos acusados de publicidade gratuita, a verdade é que, neste caso, os resultados falam por si, pelo que nem sequer se pode atribuir o seu bom valor de marca a uma qualquer espécie de jogada-mestre de marketing, pelo menos na sua totalidade. Se nos orgulhamos de viver em meritocracia, que julguemos a empresa pelo seu produto: House of Cards, a grande estreia da Netflix como produtora a par de distribuidora, foi um ressonante sucesso e continua a atrair avultados elogios à quarta temporada, assim como a grande maioria das produções de alto gabarito que se lhe seguiram – Orange is the New Black, Sense8, Daredevil, Marco Polo, Narcos e, mais recentemente, Stranger Things, The Get Down, The Crown, e mesmo o improvavelmente convincente Designated Survivor.
É com bons olhos, então, que vemos o pequeno tesouro que é Black Mirror, série de origem inglesa, criada por Charlie Brooker e originalmente no ar entre 2011 e 2014, e agora de volta aos ecrãs e sob o selo Netflix. É, afinal, uma combinação que tem tudo para dar certo: à visão distorcida da era tecnológica de Brooker junta-se, em boa hora, o poderio financeiro e de divulgação da multinacional – e por boa causa. Restava averiguar se as tão afinadas sensibilidades da série se desvirtuariam em favor do apelo massificado ou se, por outro lado, seriam amplificadas e, com elas, a sua mensagem. Brooker não é, no entanto, argumentista de medir palavras, e a terceira temporada de Black Mirror é a mais recente experiência televisiva a comprová-lo.
Aos que não estão familiarizados, o teor da série não é, por qualquer prisma que se encare, positivo, belo ou animador. É poupado em finais felizes e torna difícil sair de um episiódio com qualquer motivo para se estar bem-humorado. Ela é, na esmagadora maioria das ocasiões, o perfeito oposto de todas essas coisas, um olhar distópico sobre o modo como o social se inscreve no digital, e onde tudo isso nos levará daqui a um, dez ou cem anos, fundado numa abordagem que não resiste a atingir novos níveis de implacável pessimismo. Ao ponto de se assemelhar a um alerta para que façamos algo antes que seja tarde demais e lembrar ao mais ao inconsolável de que o fim está, de facto, próximo.
Antológico na sua composição, não há linha narrativa que trespasse os episódios de Black Mirror, cada um produzido com elenco, trama e mesmo sob realidade distinta. Une-os apenas o tema da iminente revolução tecnológica e as suas inevitáveis, raramente antecipadas e quase sempre trágicas consequências no modo como os seres humanos se relacionam e conferem sentido às suas vidas.
A gaveta de “ficção científica” em que a série é repetidamente colocada dificilmente lhe faz justiça na íntegra, já que o ambiente mais ou menos futurista em que invariavelmente se passa serve apenas de pretexto para o que, de maneira bastante perceptível, realmente interessa a Brooker: as pessoas, seus pensamentos e suas acções sob circunstâncias porventura não tão distantes de nós próprios.
E estas acções, que geralmente desembocam na tremenda angústia de uma ou todas as personagens envolvidas, surgem sempre como resultado de um ambiente de constrangimentos e normas sociais que, embora amplificados, referenciam sempre, directa ou alegoricamente, o contemporâneo. Como em Nosedive, por exemplo, impecavelmente protagonizado por Bryce Dallas Howard, uma mordaz crítica à valorização do capital social online e ao chamado fenómeno da “uberização”, num mundo em que as pessoas se avaliam socialmente de 1 a 5 e a nota de cada um define o seu estatuto e privilégio na comunidade; ou Shut Up and Dance, cronologicamente mais próximo de nós, que explora as devastadoras implicações da sobre-exposição ao mundo digital e a possibilidade de estarmos inocentemente à mercê dos seus perigos.
Nessa linha, e ao longo dos seis episódios que perfazem a primeira parte desta terceira temporada, sucedem-se temas de redes sociais, realidade virtual, opinião pública, segregação social, amor, ódio, memória, narcisismo, guerra, degradação ambiental, eugenia e morte, que se mantêm agradavelmente longe dos habituais clichés deste tipo de programação socialmente consciente (nunca esquecer o “fuck society” de Mr. Robot) e que evidenciam sempre os excelentes valores de produção por que se prima a série: meritória realização e fotografia, extraordinário argumento (a cargo, em grande parte, do próprio Charlie Brooker) e um elenco que não resiste a brilhar, quer seja pela empática humanidade quer pela mais fria desumanidade.
E ainda que, uma vez assistido parcial ou integralmente, Black Mirror desperte o anseio de descartar o smartphone, apagar todas as contas online e isolar-se tecnologicamente do mundo, o facto é que convence igualmente de que tudo isso pouco importaria para o futuro que se anuncia.
Deixa, com pouca margem para dúvidas, a certeza de ser de visualização obrigatória, não apenas pela sua absoluta pertinência mas também por representar, em muitos sentidos, exactamente o tipo de reflexão que deve ser promovida pelo mundo moderno, tanto individual quanto colectivamente. E, talvez, mais aterrador do que pensar que podemos estar a caminho de qualquer dos cenários descritos, é cogitar se não seria a nossa própria modernidade o tema de uma distopia orwelliana para a sociedade de há décadas atrás. E, finalmente, atingir a conclusão de que já houve conceitos menos plausíveis.
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