Retalhos da vida dos Pink Floyd (1968)
Texto: NUNO GALOPIM
Está em curso aquilo que parece ser a edição definitiva das obras dos Pink Floyd. Os álbuns estão a regressar às lojas em suporte de vinil em novas edições que traduzem não apenas um cuidado no corte e prensagem, mas no próprio tratamento prévio do som, remasterizado a partir das fitas analógicas originais. Lançados segundo uma ordem cronológica, estes lançamentos já nos fizeram avançar até 1973, o ano de Dark Side of The Moon. É contudo para contar, ao mais pequeno detalhe, tudo o que aconteceu antes, que acabou de ser editada uma caixa (de volume e conteúdo impressionantes) que nos conta a história complementar ao que os álbuns nos deram a conhecer.
The Early Years 1965-1972 junta uma CD, DVD, Blu-Ray, cinco singles em vinil e inúmeras reproduções de posters, flyers, bilhetes de concertos, recortes de imprensa, convidando-nos a uma viagem no tempo que define um novo paradigma pelo qual certamente poderemos esperar outras integrais de outros artistas em tempos futuros. Ao mesmo tempo, e até porque esta caixa está longe de ser acepipe de preço reduzido, foi editada uma antologia que, com o mesmo título, conta parte desta mesma história num alinhamento compactado a dois CD.
Para um olhar mais “completo” sobre este percurso entre as origens do grupo e a edição de Obscured by Clouds, o disco com a música criada para o filme La Valée, de Barbet Schroeder, que precede Dark Side of The Moon, aqui fica um olhar pela caixa, segundo os sete volumes nos quais os temas, vídeos e imagens são arrumados.
1965-1967
A etapa inicial da vida dos Pink Floyd, que corresponde ao período em que Syd Barrett é o seu vocalista e principal força criativa, é recordada num conjunto de gravações que recuam até inícios de 1965, quando dão a ouvir os resultados de uma primeira sessão em estúdio. Está ali, além do vocalista e dos restantes membros da formação “clássica” Roger Waters, Nick Mason e Rick Wright, o guitarrista Rado Klose, que com eles já tocava mas em breve sairia de cena. O alinhamento, com quatro temas de Syd, um de Waters e uma versão de um original de Slim Harpo – que teve primeira edição num EP de tiragem limitada em finais de 1965 – permite-nos um olhar sobre os caminhos originalmente trilhados pelo grupo, ainda sob evidente expressão de uma admiração pelos blues…
Sinais de mudança chegam nos dois primeiros singles de 1967, Arnold Layne e See Emily Play, editados antes do álbum Piper At The Gates of Dawn, por eles passando já marcas de uma transformação nas formas, instrumentação e cores da música que faria dos Pink Floyd uma das forças mais marcantes do psicadelismo made in UK. O CD1 deste volume – que apresenta por título 1965-1967 Cambridge Station (numa alusão geográfica ao lugar onde as ideias começaram a brotar) inclui os lados B desses singles, assim como junta Apples and Oranges, bizarra (mas deliciosa) tentativa de criação de um novo single capaz de servir de sucessor ao sucesso de See Emily Play (o que não aconteceu).
Há ainda aqui misturas novas para temas como Matilda Mother (excelente!) ou Jugband Blues (a única canção de Syd a figurar depois no álbum de 1968), surgindo depois inéditos como In The Beechwoods, Scream Thy Last Scream (que faz uma curiosa rima com o contemporâneo The Laughing Gnome de David Bowie) ou Vegetable Man (outra hipótese ponderada para o terceiro single), que nos ajudam a completar o retrato desse 1967, ao qual o CD 2 junta a gravação de uma atuação ao vivo em Estocolmo, num alinhamento de oito temas entre os quais emerge já Set The Controls For The Heart of The Sun. Este CD2 acrescenta ainda nove takes alternativos de John Latham, outra experiência de caráter exploratório em consonância com a demanda estética que o grupo tomava em busca de um caminho para um segundo álbum, em setembro de 1967.
O DVD e Blu-ray que completam este “volume” inclui filmes promocionais para Arnold Layne, The Scarecrow e Jugband Blues, uma atuação no Top of The Pops ao som de See Emily Play e uma outra, no programa de Dick Cavett, nos EUA, com Apples and Oranges. Vale a pena notar, nesta atuação, o olhar já distante de Syd Barrett, como contraponto podendo servir uma entrevista para a BBC na qual tocam Astronomy Domine e, tanto ele como Roger Waters, resistem estoicamente aos comentários do apresentador do programa, claramente incomodado pela “barulheira” da atuação. Há duas reportagens que nos levam aos ambientes do clube UFO em inícios de 1967, assim como excertos de atuações ao vivo captadas para a televisão ao longo do ano, numa delas, para a BBC, sendo apresentado Intersrellar Overdrive. As imagens mais antigas, captadas em 1966, surgem, compostas, ao som de Chapter 24, revelando-nos memórias de uma banda nos seus tempos de juventude.
Entre as reproduções de memorabillia que aqui encontramos há um bilhete de um concerto no Queen Elisabeth Hall a 12 de maio de 1967, assim como o respetivo cartaz, no qual se sublinha (como na letra de See Emily Play), a ideia de “Games For May”… Há um anuncio de jornal para uma atuação no UFO em dezembro de 1966, flyers para diversas outras atuações e um recorte de imprensa no qual Chris Jagger (sim, o irmão de Mick), faz um elogio dos Pink Floyd, prevendo uma carreira de sucesso. Ao referir as suas prestações ao vivo diz: “em palco os Pink Floyd perdem-se completamente na sua música e o seu objetivo é o de absorver as mentes dos que estão a vê-los, o que não é fácil com as atmosferas cool que encontramos por Londres”.
O booklet, com um texto de Mark Blake, ajuda a contextualizar depois todas estas músicas e imagens.
1968
O caráter errático e imprevisível de Syd Barrett fora já assinalado quando tinham trabalhado no álbum de estreia, acentuando-se os problemas quando, depois de terminado o disco, chegara a hora de regressar à estrada. É então que entra em cena um outro elemento cuja presença reforçaria a caracterização deste como um período de transição. Antigo colega de Syd Barrett nos tempos de escola, David Gilmour começou por ser chamado para, em palco, compensar as falhas e até mesmo as faltas do vocalista (e também guitarrista). Com uma formação alargada a cinco chegaram a entrar em estúdio, crendo-se que Set The Controls For The Heart of The Sun, um dos temas mais marcantes do alinhamento do segundo álbum, A Saucerful of Secrets, possa representar um raro momento gravado a contar com a presença dos cinco elementos que o grupo então juntava.
Antes do álbum os primeiros sinais de um grupo em busca de um novo caminho surgem em Point Me At The Sky, single que procura caminhos para lá das formas ensaiadas em 1967, apesar de manter viva uma vontade em explorar as potencialidades cénicas e cromáticas que a faceta mais caleidoscópica da música da banda na etapa vivida com Syd Barret traduzira. É com esta canção (injustamente esquecida com o tempo), com o single seguinte, It Would Be So Nice (uma das experiências mais luminosamente pop de toda a obra dos Pink Floyd) e com os respetivos lados B que abre o CD deste segundo corpo de memórias, que se apresenta sob o título 1968 Germin/Ation. Ignorados pelo mercado na altura, os singles tiveram mais presença nos alinhamentos de atuações dos tempos seguintes, sobretudo com Careful With That Axe Eugene, instrumental claramente mais exploratório (e descendente direto das visões mais experimentais de 1967) que surgia na outra face de It Would Be So Nice. Julia’s Dream, o lado B de Point Me At The Sky é uma bela e discreta incursão por terrenos folk, mas com cenografia elaborada ao fundo do palco.
O restante alinhamento deste CD junta sobretudo temas gravados em sessões de rádio nas quais, antes de editado A Saucerful Of Secrets, encontramos uma banda em processo de condução de uma demanda pelo que queriam mostrar no álbum, ocasionalmente recuperando memórias de 1967, como Interstellar Overedrive, aqui numa sessão para a BBC em dezembro de 68, esta realizada já com o segundo álbum editado.
Os olhares sobre o legado de 1967 novamente a quatro, embora com David Gilmour na banda e Syd Barrett já afastado, são um dos pontos de interesse do DVD e Blu-ray deste capítulo. Uma série de atuações para a TV belga em fevereiro de 1968 antecipam temas que surgiriam no álbum desse ano, mas recuperavam ainda peças como The Scarecrow, See Emily Play ou Astronomy Domine, do ano anterior, num lote onde o mais estranho mesmo é ver Apples and Oranges sem o seu vocalista original. Há depois sessões e atuações para televisões em França, Reino Unido ou Itália, valorizando algumas delas os dois singles editados em 1968 e que pouco depois seriam afastados das atenções do grupo.
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