Os dez melhores livros de 2016
Estes foram os dez livros mais votados pela equipa da Máquina de Escrever. O método foi simples, pedindo a cada um que integra a equipa, independentemente das águas em que habitualmente navegue, e desafiando também aqueles que, convidados, assinaram pontualmente textos este ano, que escolhesse as seus dez livros favoritas do ano, da soma das votações surgindo esta lista que agora aqui apresentamos.
1. “A Casa”, de Paco Roca
(Levoir)
Pouco tempo depois de o pai de José, um jovem escritor, morrer, este volta à casa onde cresceu para a arrumar e decidir o que fazer com ela. Aos poucos, vão chegando os outros irmãos e, um a um, com as suas famílias, revivem as suas memórias de crianças, do próprio pai e do jardim da casa, de que este adorava cuidar. Num registo autobiográfico – o autor também perdeu o pai pouco antes –, o escritor e desenhador Paco Roca (Rugas, 2007; O Inverno do Desenhador, 2010) mostra nesta novela gráfica como a memória é feita de construções e reconstruções, remexidas ou valorizadas conforme o tempo e as fases das relações. E mostra como as casas também estão animadas por recordações e por quem as habita ou habitou. Pelo cariz autobiográfico e de revisitação da memória paterna, têm-no comparado a A Arte de Voar de Antonio Altarriba (2009), O Diário do Meu Pai de Jiro Taniguchi (1995) ou Fun Home de Alison Bechdel (2006). Saiu em Espanha no final de 2015 e, em Portugal, já este ano, pela mão da Levoir. É um dos livros mais simples, bonitos e honestos de Paco Roca e, sem dúvida, uma das bandas-desenhadas marcantes deste ano. – João Santana da Silva
2. “Born To Run”, de Bruce Springsteen
(Elsinore)
Com uma linguagem simples, direta, Born to Run é um relato vibrante, cheio de pequenos detalhes e de grandes olhares, através do qual acompanhamos a evolução do músico que começou por reconhecer que não tinha particulares talentos enquanto voz em frente a um microfone, mas que se tornou num dos maiores singer songwriters da história da música popular e um performer de exceção que, ainda hoje, não olha para o relógio na hora de pensar quando deve sair do palco e dar o concerto por terminado. E descobrimos a formação gradual de uma consciência política que (felizmente) sabe dar voz ao que pensa e defende, em várias ocasiões deixando bem claras notas críticas às figuras no poder e aos candidatos aos cargos políticos. O ícone de classe trabalhadora made in New Jersey que as canções construíram tem, aqui, nestas páginas, um retrato nítido e frontal da consciência social e política que o define. De resto, das lendas e mitologias, só a uma não adere: a de se lhe chamar “The Boss”. Não é coisa que ele faça. Mesmo deixando claras as lutas (pessoais, políticas e profissionais), há em Born To Run uma mão cheia de histórias mais ligeiras, que fazem desta leitura uma entremeada afinal sempre surpreendente e saborosa de acontecimentos. Com uma escrita que não coloca filtro no entusiasmo recorda, por exemplo, o momento da descoberta visual dos Beatles. Já os tinha escutado na rádio. Mas foi ao ver a capa do mítico Meet the Beatles, que se fez luz. Olhou aquelas caras sobre um fundo negro. Era, como ele mesmo descreve, um monte Rushmore do rock’n’roll. E o que foi o que mais o impressionou? Algo que a rádio não lhe tinha mostrado: os cabelos! – N.G.
3. “Democracia”, de Alecos Papadatos e Abraham Kawa
(Bertrand)
Em Democracia os gregos Alecos Papadatos e Abraham Kawa recordam como os atenienses criaram e defenderam o modelo político pelo qual regiam a sua sociedade, numa narrativa histórica que revela algumas ressonâncias com o nosso tempo atual num livro que é mais um bom exemplo de como todo um conjunto de novos assuntos estão neste momento a ser abordados através de graphic novels. Pelo facto de ter surgido em plena crise (contemporânea) grega, houve quem pensasse o livro tivesse nascido como reação ao momento. Na verdade estavam a trabalhar no projeto desde 2008 ou 2009 e seu objetivo era o de contar o que se passara no século V, olhando para os factos históricos e, assim, fazer uma história intemporal. O que aconteceu foi que, quanto mais olhavam para as fontes históricas e para os acontecimentos do presente começaram a reparar que havia demasiados paralelos. E o que fizeram foi então trazer esse sentido intemporal da história. Apesar do cenário factual e da trama política que cruza todo o livro, os autores optaram por usar como protagonista um herói ficcionado e não uma figura histórica real. Ao fazer a investigação descobriram que o povo ateniense teve um papel muito importante em todo o processo, pelo que decidiram contar a história através dos olhos de um ateniense, o que junta à dimensão política a visão do quotidiano que aqui também se retrata. O protagonista de Democracia, Leandro, é um ceramista. É um pouco como um autor de banda desenhada daquele tempo… Ou seja, mesmo na narrativa, é também ele um contador de histórias.
4. “Duna”, de Frank Herbert
(Saída de Emergência)
No final da década de 50 Frank Herbert, que em 1955 tinha chamado atenções nos universos da ficção científica com The Dragon In The Sea, começou as pesquisas para um novo livro, que afinal se revelaria uma aventura de extensão épica, daí resultando uma saga que se projetaria em cinco romances publicados entre 1965 e 1984, com os primeiros dos volumes inicialmente apresentados num seriado na revista Analog, de 1963 a 65, precisamente os dois – Duna e O Messias de Duna, que a Saída de Emergência fez devolver este ano às livrarias portuguesas. Duna, história na qual a importância da tecnologia é secundarizada com vista a uma concentração de atenções na exploração das figuras que a protagonizam, foi o primeiro romance de ficção científica a tomar a ecologia como um dos seus contrafortes, os outros socorrendo-se da intriga política, económica e religiosa, a luta pela sobrevivência e uma valente dose de metáforas sobre os cancros que corroem o poder. Em Duna, Herbert explora ainda as potencialidades não conhecidas do uso da mente. A noção de liderança, de resto, é tema frequente na obra de Frank Herbert, várias as ocasiões em que reflecte sobre a forma como estadistas carismáticos geram servidão cega entre as massas. A natureza da loucura e sanidade é ainda outro dos seus campos de reflexão, assim como a forma como a linguagem molda o pensamento. Adaptado ao cinema por David Lynch (no mais atípico dos seus filmes), Duna poderá em breve regressar ao grande ecrã numa nova visão.
5. “Os Vampiros”, de Filipe Melo e Juan Cavia
(Tinta da China)
Filipe Melo e Juan Cavia já tinham surpreendido com a saga das fantásticas, incríveis e extraordinárias aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy – que permitiram trazer uma nova abordagem à BD de terror, um género pouco visto em Portugal. Mas esta dupla voltou para dar uma nova surpresa, com algo de completamente diferente em relação aos trabalhos anteriores. Os Vampiros é uma densa epopeia bélica pelos fantasmas do Estado Novo, que conta a história de um grupo de soldados e uma estranha missão por cumprir. Enquanto a jornada prossegue, há espaço para as personagens se revelarem no que há de mais belo e macabro nas suas vidas, enquanto presenciamos o crescimento de uma tensão interna que está sempre presente, sem que em algum momento se utilizem clichés vistos em tantas histórias semelhantes. É uma obra que já é um clássico da BD portuguesa, e uma bela reflexão sobre o passado recente do país, e alguns outros demónios que ainda não desapareceram do nosso imaginário. – Rui Alves de Sousa
6. “De Onde Todos Observam”, de Megan Bradbury
(Elsinore)
As histórias das cidades são a soma das histórias daqueles que as fazem e habitam. Tomando Robert Mappelthorpe, Walt Whitman, Robert Moses e Edmund White como personagens principais de Onde Todos Observam, Megan Bradbury faz de Nova Iorque a protagonista maior deste mosaico de pequenas histórias, de fragmentos de acontecimentos, de olhares breves (mas atentos), que fazem escutar a respiração e sentir a pulsação da cidade que nunca dorme. Sinais de um tempo de disponibilidades curtas e de hábitos de consumo mais dados a fragmentos que a objetos mais extensos, Onde Todos Observam ganha forma num conjunto de pequenos capítulos, por vezes quase vinhetas, que nos fazem saltar constantemente entre personagens e épocas, entre os respetivos universos, demandas, preocupações e desejos, entre si entrelaçando-se as linhas pelas quais Megan Bradbury desenha a sua Nova Iorque. Não é exatamente a cidade das ruelas laterais e dos lugares menos óbvios que em tempos Joseph Mitchell registou em algumas das mais deliciosas prosas com essa mesma cidade por cenário. Mas, como na escrita desse repórter dos anos 30 e 40, Megan Bradbury não procura aqui nem os postais ilustradas nem as figuras de visibilidade maior que nos contariam o que já todos antes tínhamos visto. E é na escolha das personagens que, desde logo, lança um olhar que deixa claro que esta é a sua visão de Nova Iorque, deixando para outras figuras e outras histórias as muitas outras de um lugar que nunca se resolveria num punhado de páginas. – N.G.
7. “A Denúncia”, de Bandi
(Alfaguara)
Bandi é o pseudónimo de um escritor que vive na Coreia do Norte. Atento e alarmado desde há algum tempo pelo que via ao seu redor (até porque a primeiras das “histórias” que aqui nos conta terá sido redigida em 1989), decidiu questionar o funcionamento do regime e da sociedade que este moldou. Usando a única arma que sabe manejar: a escrita. Estes pequenos contos nasceram em pequenas folhas de papel quadriculado. A lápis… E durante algum tempo viveram escondidos, não havendo nessa altura como os fazer chegar além das fronteiras para uma eventual publicação. A arte maior de Bandi reside na construção das personagens, na capacidade em fazê-las parte de uma trama narrativa de ficção que transpira, sem vacilar, ecos de uma realidade que no fundo molda tudo e todos os que habitam entre as páginas de um livro que, mesmo feito de pequenas histórias, vale como um corpo maior que transforma em denúncia e crítica o desespero que tem como matéria prima bem fixada na realidade. Comparado aos valores de denúncia que habitam muita da escrita do dissidente soviético Alexander Soljenitsin, o conjunto de contos de Bandi que se apresenta, inclusivamente, sob o título A Denúncia, serve-nos uma série de olhares sobre figuras do quotidiano norte coreano, todas elas confrontadas com uma sociedade vigiada, impiedosa, onde os rumores podem destruir vidas. – N.G.
8. “Watchmen”, de Alan Moore e Dave Gibbons
(Levoir)
Alan Moore e Dave Gibbons criaram, há mais de três décadas, um dos maiores colossos da nona arte, que inspirou tudo o que se seguiu, e alterou para sempre a relação do público com os comics. Watchmen é uma das narrativas que proporcionaram uma abertura da BD a um núcleo de leitores mais adultos, e é um dos títulos responsáveis pela popularização do termo graphic novel (de que o próprio Moore não é apreciador). Mais do que uma grande história de super-heróis, Moore e Gibbons criaram uma saga que confronta um contexto específico (a guerra fria e o moralismo do “american way of life”), através de um universo alternativo onde os super poderes se confundem com o melhor e o pior da vida mundana e dos problemas da humanidade. É difícil dizer algo de novo sobre Watchmen por ser um daqueles objetos literários tão reverenciados que, por isso, já se encontram bem enraizados no imaginário popular. Resta dizer que vale a pena ler, ou reler, esta obra sem igual na História de BD, que já está disponível (finalmente!) em português de Portugal. – Rui Alves de Sousa
9. “M Train”, de Patti Smith
(Quetzal)
Sucessor de Apenas Miúdos, no qual centrava o corpo de recordações nos tempos em que partilhou o seu dia a dia com o fortógrafo Robert Mapplethorpe (que foi o autor daquela foto icónica que vemos na capa do álbum Horses, de 1975), M Train abre horizontes a outros tempos, vivências e protagonistas. E, apesar de nos transportar por geografias variadas, toma o lugar de um pequeno café, em Manhattan, como ponto de partida. O Café ‘Ino… Era ali que, sob quatro ventoinhas de teto, Patti Smith tomava o pequeno almoço. Sempre o mesmo: uma tosta de pão escuro, um pires de azeite e uma chávena de café. Mas naquela manhã, além do cozinheiro mexicano e de Zak, o empregado, Patti Smith não vê mais ninguém. São nove da manhã, o frio que começa a chegar lembra que está já em novembro… E quando Zak serve o café conta que aquele será o último que lhe serve. Porque, ali chegado e após anos a fio a ali trabalhar, vai agora abrir um café de praia… A notícia desencadeia a primeira viagem no tempo. E Patti Smith recorda então a chegada a Nova Iorque, os outros cafés onde ia quando o ‘Ino ainda não existia, os lugares onde habitou e, depois de conhecer Fred ‘Sonic’ Smith, com quem casaria, um novo momento de partida que a levaria a Detroit. E assim, aparentemente a falar de coisa nenhuma, mas acabando afinal a evocar memórias, lugares e as suas vivências, Patti Smith percorre a primeira das muitas viagens que M Train nos dá a conhecer. Não é literatura de viagens nem a mais canónica das autobiografias. Mas junta as duas ideias, mostrando uma (já conhecida) relação com os ecos do que ficou daqueles que já nos deixaram, e que Patti Smith aqui faz questão de lembrar. – N.G.
10. “Chega de Saudade”, de Ruy Castro
(Tinta da China)
O brasileiro Ruy Castro, escritor e jornalista, tem uma santíssima trindade de biografias que, postas lado a lado, nos dão um excelente retrato da cultura popular do Brasil do século XX, e entre as quais é difícil escolher a obra-prima: O Anjo Pornográfico (1992), sobre o jornalista e dramaturgo Nelson Rodrigues; Estrela Solitária – Um brasileiro chamado Garrincha (1995), a biografia do brilhante e trágico jogador de futebol brasileiro; e Carmen – uma biografia (2005), sobre a espampanante cantora de rádio Carmen Miranda, que nasceu em Marco de Canaveses, se fez estrela no Brasil e morreu em Beverly Hills. No entanto, o seu primeiro livro foi uma pequena grande viagem pelo mundo da Bossa Nova, que agora sai pela primeira vez em Portugal pela mão da Tinta-da-china. Publicado em 1990 pela Companhia das Letras, Chega de Saudade – A História e as Histórias da Bossa Nova lança-se na missão que o próprio título anuncia. Para além da visão panótica e mais ou menos cronológica sobre a geração da Bossa Nova brasileira – de Tom Jobim, João Gilberto, Vinícius e companhia –, Ruy Castro lança-se também nas pequenas estórias e episódios que compõem o mundo destes artistas e génios musicais, uma atenção ao pormenor (incluindo os mais sórdidos) que torna as suas biografias únicas. Um dos livros essenciais, senão o melhor, sobre a Bossa Nova. – João Santana da Silva
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