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“Low”, de David Bowie, faz 40 anos

Texto: NUNO GALOPIM

Originalmente lançado a 14 de janeiro de 1977 o álbum “Low” abriu discograficamente um dos períodos mais criativos e marcantes de toda a obra de David Bowie. Com Brian Eno e Tony Visconti por perto desenhavam-se ali caminhos que música pop tomaria no futuro.

Foi em Berlim que Bowie viveu um tempo reencontro consigo mesmo após a verdadeira assombração de dependência e solidão que terá representado o período em que passou em Los Angeles em meados dos anos 70 e que teve como última expressão discográfica o álbum Station To Station, pelo qual passavam já sugestões de um foco de interesses com sede alemã (nomeadamente nos primeiros sinais de assimilação das electrónicas, eco direto da descoberta da música dos Kraftwerk e outros novos nomes de uma cena emergente que teria expressão global pouco depois).

Em Berlim Bowie redescobriu uma tranquilidade e um quase anonimato que lhe parecia impossível numa outra grande cidade ocidental depois do estatuto para o qual o havia catapultado o sucesso pós-Ziggy. Entre a multiculturalidade que (ainda hoje) se respira nas ruas da cidade, o pequeno enclave de liberdade e visões então com muro em volta, um espaço de mentalidades abertas e casa de muitos artistas, Berlim foi a sua nova casa durante grande parte da segunda metade dos anos 70.

Ali encontrou um apartamento, igual ao de tantos outros berlinenses, no bairro de Shoenberg (onde também então morou Iggy Pop, um dos seus grandes colaboradores nesta etapa). Entre a vivência na cidade e a sua relação com os jovens berlinenses (de que o livro Christian F dá conta) Bowie respirou o clima que marcaria uma das mais criativas etapas da sua obra discográfica, que registaria numa série de três álbuns – Low (1977), Heroes (1977) e Lodger (1979) – habitualmente descrita como a “trilogia berlinense”. Na verdade, apenas Heroes foi integralmente concebido e gravado em Berilm, registado nos hoje míticos Hansa Studios (na época a paredes meias com o muro, a poucos metros da outrora desolada Potsdamer Platz). Low na verdade nasceu entre os estúdios do Château d’Herouville (os mesmos onde gravaram Sérgio Godinho e José Mário Branco) em França e Berlim.

Não é fácil escolher “o” álbum de David Bowie, tantas que são as referências fulcrais numa obra diversa e vasta. Contudo, a fazer-se a escolha, Low frequentemente acaba empatado com The Rise and Fall of Ziggy Stardust and The Spiders From Mars (1972). Desempatando, escolha-se o primeiro. E porquê? É tão visionário quanto Ziggy, fonte de descendência imensa. Mas, mais que esse monumento de 1972, Low cruza num só momento uma vontade de experimentar novos caminhos para a canção, assim como compreende o desafio textural, mais experimental, demonstrando atenção sobre o que de mais novo acontecia nas franjas da música popular (e não apenas) do seu tempo.

Curiosamente, o disco começou por ser uma proposta, rejeitada, de banda sonora para o filme The Man Who Fell To Earth (1975) de Nicolas Roeg, protagonizado pelo próprio David Bowie. Contudo, mais que uma fonte de frustração perante essa rejeição, a música de Low nasceu como um processo quase terapêutico numa etapa difícil (de que Diamond Dogs era premonição e Station To Station um fruto).

Teve primeiras sessões nos estúdios perto de Paris, onde Bowie já havia gravado Pin Ups (1973). Fulcral no desenvolvimento de um álbum que teve Tony Visconti como produtor foi o desafio lançado por Bowie a Brian Eno, ex-Roxy Music cujas recentes experiências texturais em Another Green World e, sobretudo, Discrete Music (1975) tinham sido banda sonora recorrente durante as suas viagens de carro na América, em 1976. Eno, por seu lado, considerava Station To Station (1976) um dos melhores álbuns de sempre, relacionando-o inclusivamente com caminhos que havia percorrido nos primeiros tempos dos Roxy Music.

Mais próximo de John Cage e Philip Glass do que dos manifestos pop/rock de então, Eno trouxe a Low (e aos subsequentes Heroes e Lodger) uma noção de contraste. O desafio que lhe foi lançado originalmente por Bowie visava a construção, conjunta, de um álbum que tinha por título de trabalho Night Music, Night and Day… Na verdade, Low não parece fugir muito desta sugestão. Mais que apenas vincar a vontade de Bowie em ter o som dos Kraftwerk como ponto de partida e de permitir uma abordagem de conhecedor às novas máquinas, Eno trouxe a estúdio técnicas de trabalho desafiantes, nomeadamente as “oblique strategies” (que tinha desenvolvido em 75 com Peter Schmidt), entregando aos músicos cartões aleatórios com sugestões a cumprir durante as sessões de gravação.

Problemas pessoais afastaram o trabalho para Berlim, onde as sessões continuaram nos estúdios Hansa. A cidade revelar-se-ia uma descoberta terapêutica para Bowie. Anónimo, voltou a andar pelas ruas. Ao mesmo tempo, a herança cultural da cidade cativou-o. Começou a pintar. E aí fixou residência. Low, apesar de traduzir uma ruptura de Bowie com uma lógica narrativa na escrita, traduz claramente o seu tempo.

O lado A é claramente autobiográfico, reflectindo sobre um período de recuperação de um fosso, o final do casamento com Ângela, o isolamento, até mesmo algum sentido de vazio que conheceu nos dois anos anteriores. No outro lado, os desafiantes instrumentais no lado B revelam um sentido contemplativo, por vezes descritivo, mesmo que assombrado (mas não pelos demónios anteriores, antes, pelo universo ao seu redor). Editado em janeiro de 1977, era diferente de tudo o que então surgia ainda em tempo de revolução punk. Gerou reacções divididas. O tempo acabaria por trazer-lhe invulgar unanimidade.

Um mês depois de editado o álbum chegou um single. E a primeira escolha do alinhamento de Low para rodar a 45 rotações foi Sound and Vision, uma canção que Bowie tinha trabalhado inicialmente no plano instrumental, só gravando a voz no fim, quase sem ninguém por perto, no estúdio. O single, com o instrumental A New Career in a New Town no lado B, transformou-se num clássico instantâneo e deu mesmo a Bowie o seu maior êxito no Reino Unido desde 1973.

Aquela que é a canção mais atípica (relativamente às demais) do alinhamento do álbum foi escolhida para segundo single, sucedendo a Sound and Vision. Dominado pelas guitarras (e não pelas electrónicas, como na maior parte do alinhamento do disco) e pela presença de um piano com alma vintage, Be My Wife é uma canção curta, angulosa e algo convencional. Como single (foi editado em junho de 1977 com Speed of Life no lado B) passou a leste das atenções.

Entre as muitas descendências de um disco que ajudou a talhar os caminhos que a música pop/rock tomaria na década de 80, o álbum Low é um dos maiores exemplos de inspiração, em terrenos da música popular, para uma experiência na área da música sinfónica já que, no início da década de 90 foi a partir de momentos deste disco de 1977 que Philip Glass encontrou os motivos de inspiração para a sua primeira sinfonia. Hoje, apesar de reconhecida como sendo a Sinfonia Nº 1 de Glass, a obra continua a ser evocada como a Low Symphony. Poucos anos depois o compositor norte-americano assinou uma nova experiência sinfónica com base na música de Bowie, desta vez apresentando a Heroes Symphony.

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