Pelo espaço fora, com Valerian e Laureline (6)
Texto: NUNO GALOPIM
Com os universos de ficção nascidos na banda desenhada a representarem uma cada vez mais marcante presença nos ecrãs de cinema sabe bem ver que também o espaço da criação franco-belga (com tanta e tão importante presença na história da nona arte) também está ali representado. Se a incursão de Steve Spielberg e Peter Jackson pela obra de Hergé ainda espera um segundo episódio, já os gauleses criados por Goscinny e Uderzo somam uma filmografia expressiva (não necessariamente tão interessante quanto volumosa, é verdade). Em 2017 chegam ao cinema de imagem real as aventuras de Spirou e de Fantásio e também uma investida do cineasta Luc Besson (o mesmo de O Quinto Elemento) pelas histórias de ficção científica que Pierre Christin e Jean-Claude Mézières criaram em torno das figuras de Valérian e Laureline.
Valérian surgiu representado pela primeira vez em 1967 nas páginas da revista Pilote. Juntamente com Laureline fazem uma ágil dupla de agentes espácio-temporais de Galaxty, a capital de uma grande confederação galáctica no século XXVIII. A bordo de uma pequena nave de serviço que é dotada de tecnologia que lhes permite caminhar rapidamente no espaço e no tempo, os dois agentes caminham de mundo em mundo, contactando com civilizações (umas já identificadas, outras desconhecidas) e procurando resolver focos de conflito, de desequilíbrio e, frequentemente, de injustiça.
Em jeito de contagem decrescente para a chegada do filme, recordamos aqui álbuns marcantes das aventuras de Valérian e Laureline. A referência a esta série com o nome dos dois heróis data da publicação do vigésimo álbum e é assim que agora os livros são republicados e as novas integrais apresentadas.
“O Embaixador das Sombras”
(1975)
Com uma dinâmica já encontrada na relação das personagens com os tipos de narrativas que os encontros com os povos dos vários planetas visitados tinham entretanto ajudado a definir, chegara a hora de experimentar uma trama que envolvesse uma ainda mais vasta multidão de seres e de acontecimentos. O Ponto Central, que seria visitado mais vezes por Valérian e Laureline surge pela primeira vez em O Embaixador da Sombras, história que assinala também a primeira presença dos shingouz, pequenos seres alados e com nariz em forma de tromba que aparecem sempre em trio e trocam informação por dinheiro. E com o dinheiro aparece também aqui pela primeira vez o pequeno porta-moedas vivo de Laureline, um transmutador resmungão de Bluxte.
A história leva-nos ao Ponto Central, uma gigantesca estação espacial que foi crescendo com módulos sucessivamente acrescentados pelos mais variados povos da galáxia, cada qual contudo vivendo confinado ao seu (já que as condições de habitabilidade diferem muito de povo para povo). Valérian e Laureline são ali enviados para acompanhar a chegada do novo embaixador de Galaxy que é contudo raptado (juntamente com Valérian) mal chega ao módulo terrestre. Cabe a Laureline andar depois por Ponto Central em busca de pistas que lhe permita recuperar tanto Valérian como o embaixador que, afinal, trazia uma outra agenda escondida…
Os bares e os demais circuitos de bas-fonds visitados por muitas das sequências da saga Star Wars tiveram possivelmente aqui uma boa fonte de inspiração.
E agora recuemos na história, para recordar os volumes anteriores…
“A Cidade das Águas Movediças”
(1970)
Não corresponde à primeira das aventuras de Valérian e Laureline. Mas segue pistas que eram lançadas nas primeiras pranchas. Na verdade o álbum, o primeiro a ser publicado, junta duas histórias inicialmente publicadas na revista Pilote, em ambas a dupla de agentes perseguindo um vilão (um tirano que sonhava ser ditador e que era o único preso político de Galaxty) que rumara à Terra dos anos 80 do século XX ali procurando modificar o curso da história em seu favor.
O livro, que a nós chegou com o título A Cidade das Águas Movediças, nasceu da junção de La Cité des eaux mouvantes e Terre en flammes, respetivamente surgidas em 1968 e 1969 e que em 1970 acabaram reunidas num mesmo álbum. A primeira parte da narrativa coloca-nos numa Manhattan alagada, representando esta uma das primeiras visões de um futuro em que o nível dos mares subiu, destruindo parte das áreas urbanas (uma questão afinal não tão distante de preocupações atuais, se bem que no livro as causas de tamanha inundação não se devam ao efeito de alterações climáticas). A segunda metade da história decorre no parque de Yellowstone.
Entre as personagens há duas que traduzem referências a figuras da cultura popular do século XX. O líder de um dos gangues em Nova Iorque chama-se Sun Rae, numa clara alusão ao músico visionário Sun Ra. Mais adiante, na segunda parte da narrativa, Valérian e Laureline encontram o cientista Schroeder, cujo desenho evoca a figura de Julius Kelp, personagem que Jerry Lewis interpretou no filme As Noites Loucas do Dr. Jerryll, de 1963.
“O Império dos Mil Planetas”
(1971)
Originalmente publicado nas páginas da Pilote entre outubro de 1969 e março de 1970, O Império dos Mil Planetas ajudou a sedimentar ideias em torno do universo pelo qual caminham as aventuras dos agentes de Galxty Valerian e Laureline. A sua missão leva-os desta vez ao planeta Syrte, distante e algo desconhecido.
Chegados a uma cidade que se revela um importante porto galáctico encontram uma sociedade subjugada por uma elite que se fecha numa construção que lembra os velhos zigurates, notando entre a população que há ali descontentamento e medo. E é ao tentarem entrar naquele reduto fechado a quem vem de fora que descobrem não só um mundo de festas faustosas mas também a realidade de quem, por detrás das aparências, controla os mecanismos do poder.
Não espanta que esta trama tenha estado na mira da equipa de Luc Besson que neste momento ultima a pós-produção de uma adaptação ao cinema. Este é o primeiro livro no qual vemos a nave de Valerian, a XB982, que será referência transversal no resto da série.
“O País Sem Estrelas”
(1972)
O terceiro álbum de aventuras de Valérian representa um entre os vários momentos da série através dos quais a trama explora questões identitárias de género, trocando as voltas às normatividades em voga na sociedade ocidental do século XX.
A história parte da descoberta de uma ameaça de cataclismo iminente num sistema planetário, ao qual Valerian e Laureline são enviados. E num mundo aparentemente sem vida numa primeira abordagem acabam por descobrir afinal uma civilização que habita o seu interior. Há ali, na verdade três povos. Um dominado por mulheres de pulso firme, outro de homens indolentes. E pelo meio um terceiro, nómada nos hábitos, e que recolhe os cristais explosivos que vende aos outros dois, que vivem em permanente estado de conflito…
Aos dois agentes de Galaxty cabe então o papel de se infiltrar nos dois campos antagonistas e, ao seu jeito, tentar atingir um patamar de esforço coletivo que permita salvar o seu planeta do perigo que corre.
“Benvindo a Alflolol”
(1972)
Se bem que seja conhecido como Alflolol pelos seus habitantes nativos, o planeta Trchnorog está há muito colonizado por seres humanos, que ali encontraram matérias primas fundamentais às tecnologias do presente… Quando ali chegaram deram com um planeta deserto de gente e rico em matérias primas, tendo entretanto instalado fábricas por todo o lado (até mesmo sobre os oceanos) e um escudo protetor ao seu redor… Acontece que ali começam a chegar os seus verdadeiros habitantes, seres com tempos de vida na ordem dos milhares de anos e que tinham saído para dar uma “voltinha” curta de quatro milénios.
É do confronto entre os direitos dos nativos e toda uma economia humana ali instalada que vive este volume, que centra atenções numa família alflololiana com a qual Valérian e Laureline aprendem sobre os seus modos de vida (cada um desenvolve um poder especial), observando o conflito que nasce sob um ponto de vista crítico sobre a ação dos colonizadores. Um dos grandes achados da história é o goumoun, o animal de estimação da família nativa. Uma espécie de cão dos confins da galáxia…
“Os Pássaros do Senhor”
(1973)
Não é a primeira vez que Valerian e Laureline são estranhos em terra estranha, mas dotados de uma capacidade de observação que lhes permite fazer um olhar crítico sobre a sociedade que encontram. Aqui dão por si num planeta desconhecido, no qual descobrem um verdadeiro cemitério de naves espaciais desaparecidas. Em pouco tempo saberão que (e com eles acontecerá o mesmo), todos os que ali chegam acabam a trabalhar – como escravos – nas recolhas de matéria prima para um “Senhor” que garante o seu poder pelo temor que inspira o seu ameaçador bando de pássaros-loucura (que atacam e deixam a vítima doida), acabando os “loucos” por ser excluídos e a (tentar) viver marginalmente em ambiente inóspito.
Tal como sucedera em O Império dos Mil Planetas cabe a Valérian e a Laureline o papel de descodificar as causas um regime imposto pelo medo, mergulhando nas zonas proibidas do planeta e procurando encontrar o “Senhor”, que se revela uma entidade galática não antropomórfica capaz de guardar em si memórias de erros, loucuras e violências dos mais variados povos. Revolucionários por 48 páginas, Valérian e Laureline não fazem afinal mais do que ser fieis herdeiros de um sentido de justiça que sempre habitou a ficção científica, desde a mais humanista (como em Metropolis de Fritz Lang) à mais permeada pela ideologia (como em Aelita, de Aleksey Tolstoy, narrativa também levada ao cinema nos tempos do mudo).
O próprio 5º elemento, do Besson, teve mãozinha do Jean Giraud, AKA Moebius
GostarGostar