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Três olhares dançados sobre Virginia Woolf

Texto: NUNO GALOPIM

O novo disco do compositor Max Richter para a Deutsche Grammophon apresenta a música gravada para “Three Worlds”, um bailado criado em torno de três livros de Virginia Woolf: “Mrs. Dalloway”, “Orlando” e “As Ondas”.

Há cerca de três anos o texto que acompanhava a edição Retrospective, caixa que juntava então os quatro álbuns a solo que Max Richter editara entre a sua estreia em Memoryhouse e o mais recente volume da série Re-Composed, no qual aborda as Quatro Estações de Vivaldi, era assinado por Paul Morley. Ele é um jornalista veterano, cujo trabalho tanto soube estar atento ao aparecimento dos Joy Division em finais de 70 como, em inícios dos oitentas, deu por si ao lado de Trevor Horn no lançamento da ZTT Records, editora que procurou uma nova linguagem para a comunicação da música pop. A opção por Morley acabava assim por traduzir o espaço onde está (claramente) a emergir uma música que se vai afirmando como expressão progressivamente mais visível daquilo que poderá ser um dia identificado como a música do início do século XXI. Não usaria aqui o termo “clássico” porque na verdade nunca consigo deixar de associar à palavra uma noção de época à qual também surge associada. E “erudito” é um termo muitas vezes usado com tremenda ignorância sobre o que emerge dos espaços da música a que muitas vezes se atribui o rótulo “popular”. Chamemos-lhe música do século XXI… Uma música que vai ganhando forma sem acreditar em barreiras de géneros e assente numa troca de experiências e conhecimento mais alargado do que é o mundo musical de hoje. Que escapa aos que vivem de olhos vendados para lá de tudo o que é pop, rock e afins. E que igualmente passa ao lado dos que, fruto de uma formação “clássica” mais canónica, não parecem reconhecer-se por estes caminhos.

É precisamente nessa terra de ninguém que as coisas estão a acontecer. Uma terra que de certa maneira nomes como Gershwin ou Bernstein já visitaram ao entender que podiam cruzar linguagens para traduzir um pulsar realista dos ecos do seu tempo (e dos seus lugares). Terra que os minimalistas ajudaram a desenvolver (sobretudo Glass e Reich, mas em finais dos sessentas também Riley), estabelecendo pontes que comunicaram com outras músicas e assim alargaram horizontes. Terra que muito ganhou também com as visões que Brian Eno ajudou a definir quando descobriu ideias que transcendiam as fronteiras mais clássicas da canção. Que John Tavener vislumbrou quando chamou a voz “não educada” de Björk para uma peça conjunta que um dia será vista como referência. E que, vale a pena frisar, muito ganharam também com o cada vez mais presente entendimento das electrónicas e do próprio estúdio como ferramentas fulcrais de trabalho (algo que podemos agradecer ao trabalho de Stockhausen e alguns dos seus contemporâneos, e também a nomes como os Kraftwerk, Klaus Schulze e outros mais que dali partiram para experimentar outros patamares possíveis a partir dessas raízes comuns).

É nesta terra onde tanto os Kraftewerk como Arvo Pärt são matéria prima de reflexão que está a emergir uma nova música. E entre os seus primeiros grandes valores surgem nomes que juntam uma formação musical “clássica” a uma visão que não se fecha nos cânones. E assim contamos com nomes como os de Johnny Greenwood (que é guitarrista dos Radiohead), Richard Reed Parry (que inrtegra os Arcade Fire), Bryce Dessner (que é um dos elementos dos The National) ou Nico Muhly (que trabalhou com Philip Glass e tem assinado arranjos para vários discos pop/rock). Todos eles gravaram já discos de obras orquestrais por editoras como a Decca ou Deutsche Grammophon, Mulhy tendo já estreado uma primeira ópera (espaço que entretanto foi já igualmente ensaiado por nomes como os de Damon Albarn, Rufus Wainwright ou os The Knife). Contudo, talvez caiba a Max Richter o papel de ser o primeiro a ensaiar uma comunicação que eventualmente culmine numa derrocada de muros entre os universos da “clássica” e da cultura “pop” (se entre compositores já começaram a tombar, entre ouvintes e programadores ainda é desafio a aprofundar).

Nascido na Alemanha e educado desde cedo no Reino Unido, Max Richter é apresentado na Biografia que líamos no booklet de Retrospective como alguém que toma os Beatles e Bach como fontes de inspiração. Porém é da descoberta das músicas de Eno, Pärt, das potencialidades das novas electrónicas e do conhecimento histórico da música, do trabalho ao lado de uns Future Sound of London ou com orquestras que nasce a música de visões largas que nos propõe. Depois de uma etapa como instrumentista no coletivo Piano Circus foi com o belíssimo Memoryhouse (que este ano teve estreia ao vivo no Barbican) que se estreou discograficamente em 2002 num disco que juntava olhares pessoais pelas suas vivências e que conciliava uma demanda sonoplasta quase cinematográfica (usando electrónica e sons reais captados fora de estúdio) com o labor de uma orquestra.

Memoryhouse (2001) definiu um ponto de partida para o talhar de uma linguagem que Max Richter aprofundou depois em The Blue Notebooks (onde juntou palavras de Kafka na voz de Tilda Swinton), Songs From Before (que coloca Robert Wyatt a ler Murakami), 24 Postcards in Full Colour (uma reflexão de microcomposição a partir da noção de ringtone) ou Infra (que convoca heranças de Schubert e aprofunda a busca de caminhos pessoais.

Entretanto, através de alguns trabalhos para cinema – das bandas sonoras de Valsa com Bashir, de Ari Folman, a Lore de Cate Shortland –, Max Richter foi ganhando visibilidade. Foi porém o impacte maior alcançado em 2012 com Vivaldi – Four Seasons, integrado na série Re-Composed (e que representou a sua primeira edição pela Deutsche Grammophon), que o projetou rumo a um outro patamar de visibilidade e reconhecimento que entretanto gerou a criação da caixa retrospetiva da DG  e depois, em Sleep, uma primeira nova criação para a editora, revelando então a sua maior ousadia artística e discográfica até à data.

Em Sleep Max Richter apresentou uma peça com oito horas de duração. A sua ideia não era a de votar o seu trabalho a uma anulação da música perante o sono (desejado) do ouvinte. Mas antes a de criar uma música que pode ter nessa experiência uma das suas possíveis leituras. Na verdade o sono era ali uma decisão opcional para os que a escutaram em primeira mão em performances que duraram da meia noite às oito da manhã e nas quais os espectadores eram convidados a deitar-se em colchões com sacos-cama e não a sentar-se nas mais habituais cadeiras das salas de concerto. Este desafio, para além das reflexões formais e estruturais da música em si, lançava igualmente uma reflexão sobre a própria forma de pensar as normas e condutas éticas da música ao vivo, sobretudo face ao que de mais canónico costuma ocorrer em terreno clássico. Isto sem esquecer, na base de todo o projeto, um desejo em contrariar os ritmos frenéticos pelos quais muitos de nós, sobretudo os que vivem em grandes cidades, fazem o seu dia.

Sleep surgiu em disco em duas versões distintas. Inicialmente surgiu uma seleção apresentada sob o título From Sleep, tanto no formato de CD ou de álbum duplo em vinil (estando igualmente disponível nas plataformas de streaming). Mais tarde a Deutsche Grammophon lançou uma caixa com 8 CD e um Blu-ray (que congrega o registo em áudio da obra na íntegra) coma versão longa (e integral) da obra. Esta última para escutar a adormecer (aí nada como o Blu-ray, que fica a tocar por si, até a música acabar oito horas depois) ou para ir escutando, de ouvidos bem despertos, encontrando aqui sobretudo uma visão mais profunda da sugestão de um outro ritmo de acontecimentos e uma outra velocidade de perceção que nos transporta necessariamente para ecos de memórias de importantes experiências que Brian Eno começou a realizar em meados dos anos 70 e que então abriram outras possibilidades a uma noção de “ambient music”.

Agora Three Worlds: Music From The Woolf Works surge como novo episódio, revelando o resultado de uma colaboração entre o compositor e o Royal Ballet, que desafiou Max Richter a criar música para um espetáculo de dança centrado em três livros de Virginia Woolf: Mrs. Dalloway, Orlando e As Ondas (no original The Waves).

No booklet o compositor explica como resolveu encontrar marcas de identidade distintas na forma de abordar musicalmente cada um dos três livros. Em Mrs. Dalloway não só usa uma gravação da voz da própria Virginia Woolf (a ler o ensaio Craftsmanship) como depois aprofunda a demarcação das personagens nas quais centra a composição, definindo sugestões de memória na sua relação com a protagonista Clarissa Dalloway. Em Orlando, uma história de transformação, une a escrita orquestral às eletrónicas, representando esta etapa de Three World o mais interessante dos diálogos que Max Richter criou no cruzamento desses dois mundos. Depois, a fechar, As Ondas transporta uma dimensão de despedida e distância (sugerindo o adeus que o suicídio entre as águas de um rio materializaria para a escritora), numa peça mais contemplativa e melancólica que por vezes sugere ecos de alguma da música para cinema de Philip Glass de finais dos anos 70 e inícios dos anos 80, aqui num quadro todavia depois dominado pelo patamar emocional definido pelas cordas.

Para a gravação Max Richter (que assegura ele mesmo a interpretação das partes para piano e para sintetizadores) contou com a colaboração da Deutsches Filmorchester Babelsberg, dirigida por Robert Ziegler, um quinteto de cordas e ainda, além da voz gravada de Virginia Woolf, registos de leituras nas vozes de Sarah Sutcliffe e de Gillian Anderson.

A história da música não popular do nosso tempo continua claramente a passar por aqui.

“Three Worlds: Music From Woolf Works”, de Max Richter, está editado em LP, CD e disponível em plataformas digitais, num lançamento da Deutsche Grammophon.

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