Divina tragédia
Texto: ANDRÉ LOPES
A digressão realizada a propósito de HOPELESSNESS (2016) trouxe a palco uma premissa artística difícil de esquecer: se por vezes a música apresentada se prendia em demasia ao registo de estúdio, a verdade é que a as opções cénicas escolhidas aprofundam devidamente a estética visual instaurada pelos telediscos de Drone Bomb Me, Marrow e Crisis. Deslocando o foco de atenção da presença dos artistas, cuja existência física em palco era propositadamente resguardada, as canções do disco traduziram-se de modo universalizável por via da projeção de figuras femininas que mimetizavam o canto das faixas do álbum. E não só: o espetáculo que trouxe HOPELESSNESS a palco incluía ainda canções inéditas e algumas destas figuram no alinhamento de Paradise.
Poderá ser formalmente pensado como um complemento ao disco de 2016, porém este novo EP traduz uma experiência mais destemida ao afastar-se de estruturas típicas que tendem a regulamentar aquilo que se considera ou não como “canção”. A audição de Paradise é, por isso, mais estimulante e satisfatória: In My Dreams é caso de estudo. Como um elemento orgânico vivo, o loop de ruído introdutório desenrola-se até se cercar por teclas e demais eletrónicas que guiam a melodia. Quase como uma respiração pós-humana, ouve-se por aqui a influência de William Basinski pela forma como o som, quase drone, surge novamente no fim da canção da forma mais fluída possível.
Errado será prever um conjunto de canções onde a urgência se dissipou, já que a faixa título se entrega a uma atribulação semi-industrial com um dos refrães mais dinâmicos do repertório de ANOHNI. Por todas as faixas do EP há inquietude palpável, quer no som quer nas palavras – partindo de visões pessoais sobre abandono e violência, a poesia da artista continua a explorar a ótica política da vivência pessoal. O estoicismo turvo da faixa-título dará posteriormente lugar a um momento fulcral – Jesus Will Kill You encerra em si muito do que move a voz política da sua autora. Num prolongado momento sónico de percussão pouco frequente na musicalidade de ANOHNI, é estabelecido um paralelismo entre a opressão capitalista e a as dinâmicas existentes na relação entre devotos e figuras religiosas.
Paradise sugere uma vontade de explorar territórios mais experimentais face aos apresentados em HOPELESSNESS, constituindo uma pulsão curiosa por parte de uma figura que, assumindo o cariz político da sua arte, preconiza que a sonoridade implicada não prevaleça estanque ou balizada por qualquer premissa. Este novo EP socorre-se de ritmos mais extremos quando comparado com o álbum anterior, e deixa quem ouve expectante para um futuro ainda mais destemido, face ao qual Paradise será apenas um elemento de transição. Aguardamos.
“Paradise”, de Anohni, está disponível nos formatos de LP e CD e também em plataformas digitais, num lançamento da Secretly Canadian ★★★★
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