O que nos conta uma canção?
Texto: NUNO GALOPIM
O caráter bissexto com que Terrence Mallick conduziu muita da sua criação, sobretudo entre os tempos de Dias do Paraíso (1978) e A Árvore da Vida (2011) deu lugar, nos últimos anos, a uma mais frequente presença do seu cinema nas agendas das estreias de cinema. E se esse filme, que lhe valeu a Palma de Ouro em Cannes representou a definitiva conquista de uma linguagem, de então para cá temo-lo reencontrado entregue a novas narrativas, cada qual acabando por conduzi-lo por tramas, ambientes e, afinal, destinos, completamente diferentes. E assim, depois da reflexão sobre a perda de fé em A Essência do Amor (2012) e de um olhar sobre o desnorte de um argumentista de cinema em O Cavaleiro de Copas (2015), eis que nos mostra agora, em Song To Song (que entre nós estreou com o menos feliz título Música a Música) a sua história mais linear e clara desde… 1978.
Se o modo de filmar, o estilo da montagem, a presença da voz off e outros elementos são hoje dados assimilados numa linguagem muito pessoal, já a relação com a música – que é outra das mais fortes entre as marcas do cinema de Malick – conhece aqui um episódio diferente. Já havia no anterior Cavaleiro de Copas uma presença ocasional de formas da música popular dos nossos dias. Afinal era um filme passado no presente e em cenário urbano. Mas este novo faz-nos mergulhar no mundo da indústria musical, tomando a cidade de Austin (no Texas) e o festival South by Southwest como epicentro e chamando às imagens cameos de figuras como as de John Lydon, elementos dos Red Hot Chilli Peppers, Iggy Pop ou Patti Smith, entre outros. Esta última, na verdade, com um papel que lhe dá diversas presenças em várias cenas e através do qual a vemos a ser… ela mesma.
Sem recurso ao flashback nem à escuta, em off, de pensamentos anteriores que escapem aos acontecimentos contemporâneos ao seu redor, Song To Song apresenta-nos uma história de atração e de jogadas menos limpas entre músicos (Ryan Gosling e Roney Mara), um agente da indústria discográfica (Michael Fassbender) e uma empregada de restaurante que este último seduz (Natalie Portman). Evoluindo entre os circuitos pouco dados a poupanças que refletem as realidades no topo da hierarquia das indústrias do entretenimento, a história vive dos caminhos cruzados no presente, aqui e ali acolhendo ecos das histórias anteriores de cada um. Do confronto entre factos, valores, sonhos e realidades, a trama pula e avança… Acabando por ensinar a todos que a vida é feita para se saborear a cada dia, canção a canção. Daí o título…
Song To Song não é um filme sobre música (e muito menos sobre o festival South by Southwest). É, como os demais filmes de Malick, um olhar sobre valores, ações e comportamentos. Que, desta vez, tem músicos e o mundo da música pop/rock como protagonistas e cenário… Os cameos e músicos convidados diluem de resto, as ideias de eventuais contrastes entre a ficção e a realidade. Como, por exemplo, perante as conversas muito pessoais de Patti Smith ou a presença, também como personagem, de Lykke Li. E entre a multidão de biopics com dieta de cinema que têm chegado aos ecrãs nos últimos anos, este na verdade respira o mundo da música com um outro fulgor de criatividade. Tratando-se de um filme de Terrence Malick nem vale a pena ter de lembrar que as imagens que vemos a cada plano são tremendamente belas e inspiradas.
“Música a Música”, de Terrence Malick (“Song to Song” no original), com Ryan Gosling, Michael Fassbender, Rooney Mara, Natalie Portman e Cate Blanchett está em exibição entre nós.
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