Poema para um lugar estranho
Texto: NUNO GALOPIM
Há algo de profundamente perturbante logo nas primeiras sequências do filme, mesmo perante a placidez do mar (sobretudo nas imagens subaquáticas) que envolve a paisagem que serve de cenário a tudo o que se segue. E não é pela estranha descoberta que o pequeno protagonista acaba de fazer e que comunica a uma mãe que, imperturbável, lhe serve a refeição e indica que é hora de dormir… Com o evoluir das imagens apercebemo-nos que estamos numa ilha vulcânica (a cor das rochas e das areias indica-o), algures num futuro indeterminado, e com apenas mulheres (quase todas elas aparentemente enfermeiras e com sobrancelhas rapadas, o que adensa a carga inquietante do seu retrato) e jovens rapazes por habitantes. Não há meninas. Não há homens. E uma atmosfera de tensão não nos abandona, mesmo perante os aparentes gestos de zelo maternal das mulheres pelos filhos.
Com um tom de mistério sempre inquieto e dominado por uma sensação permanente de estranheza inexplicada, Evolução, de Lucile Hadžihalilović, lembra o tipo de experiência mais poética de ficção científica que, recentemente, vimos em Debaixo da Pele, de Jonathan Glazer. Também nesse filme havia um pensamento sobre o apelo sugestivo da imagem que perturba (embora surgissem depois ali confrontos diretos com o sentido realista das sequências entre as comunidades da região). Aqui não se trata da dúvida perante as motivações ou atos realizados por uma alienígena (que era então protagonizada por Scarlett Johansson). Aqui há uma ilha onde, aos poucos, percebemos que os jovens que nadam entre as ondas e brincam nas rochas com estrelas do mar, são instrumentos num processo clínico que os faz serem barrigas de aluguer para os fetos que neles são implantados… E com futuro pouco risonho para todos eles.
O protagonista tem contudo algo de diferente de tantos outros que, como ele, acabam nas mãos daquelas enfermeiras e daquele hospital húmido e desconfortável. Sente que algo está ali errado. E, com um lápis, desenha num caderno coisas que ali ninguém conhece. Carros e objetos do dia a dia dos nossos tempos, mas que ali, naquela ilha, ou são coisas do passado ou de uma geografia distante. Afinal não saberemos nunca onde estamos nem quando tudo se passa.
Nesse sentido, ao definir uma realidade que apanhamos a meio, sem coordenadas de tempo nem de lugar, nem mesmo a explicação dos porquês (um pouco como o faz Cormac McCarthy em A Estrada, na versão livro, já que a adaptação a cinema foi um desastre), Evolução é uma experiência de ficção científica visualmente poderosa e capaz de, mesmo sob ténues sugestões narrativas, conseguir conduzir-nos entre aquele mundo que vamos observando e, aos poucos, aprendendo a conhecer. Na idade do primado da pirotecnia dos efeitos especiais, da velocidade dos gestos e dos plots maniqueístas na construção de jogos entre o bem e do mal, Evolução é um magnífico poema visual (com notável direção de fotografia) que usa as linguagens da ficção científica e do terror para nos colocar perante a sugestão de uma narrativa que, mesmo não parecendo evidente, afinal emerge à nossa frente, no ecrã.
“Evolução”, de Lucille Lucile Hadžihalilovic, com Max Brebant, Roxane Duran, Julie-Marie Parmentier está editado em DVD pela Alambique.★★★★★
Republicou isto em O LADO ESCURO DA LUA.
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