Para reencontrar a música de “Twin Peaks”
Texto: NUNO GALOPIM
Entre os muitos argumentos que fizeram de Twin Peaks um caso maior na história da ficção televisiva (que agora continua com a nova série que por estes dias tem dado que falar) está a música. Tendo iniciado uma colaboração com David Lynch em Veludo Azul (1986), o compositor norte-americano Angelo Badalamenti estava a trabalhar na música para Um Coração Selvagem (1990) quando todo um processo ligado a uma série de televisão e suas derivações diretas começou a ganhar forma. Por um lado Badalamenti trabalhava no álbum de estreia de uma cantora que havia convocado à banda sonora de Veludo Azul para, com uma composição sua, tomar o lugar inicialmente destinado à versão de Song To The Siren (original de Tim Buckley) pelos This Mortal Coil cujos direitos escalavam a uma soma para lá daquilo que o orçamento permitia. Surgira assim Mysteries of Love, que se revelara num momento fulcral da banda sonora do filme, colocando desde logo a voz e a figura peculiar de Julee Cruise em órbita Lynchiana. Badalamenti estava então a dedicar parte do seu tempo a Floating Into The Night, um álbum no qual se apresentava não só como produtor mas também como compositor de todas as canções, por sua vez entregando a David Lynch a escrita das letras. O tom angelical da voz de Julee Cruise, a abordagem ambiental e envolvente da música e a atmosfera estranha que, ao mesmo tempo, exalava de todo o universo deste álbum, ajudou a definir igualmente os caminhos pelos quais foi, ao mesmo tempo, definida a banda sonora da série de David Lynch Twin Peaks, para a qual foram inclusivamente chamadas três canções do álbum de Julee Cruise – The Nightingale, Into The Night e Falling, esta última, na versão instrumental, tendo gerado o genérico da série.
A banda sonora de Twin Peaks (originalmente editada em disco em 1990) acolhe por um lado estas canções e atmosferas obscuras e tensas já desenhadas por Badalementi no álbum de Julee Cruise. Mas junta ao mesmo tempo dois importantes elementos que, com o tempo, ajudariam a definir os pilares estruturais de uma obra na música que o próprio David Lynch haveria de criar numa série de discos lançados ora através de projetos de colaboração com outros artistas – como John Neff ou Sparklehorse – ou até mesmo a solo: o jazz e os blues. Também aí os tons são assombrados, perturbantes, assimilados por uma linguagem essencialmente definida pelo trabalho das teclas e das guitarras… Os ambientes criados quer pelo célebre Laura Palmer’s Theme ou pelos não menos perturbantes travos jazzy de Audrey’s Dance ou Dance of The Dream Man revelaram-se tão determinantes na construção da identidade da série como as suas personagens, os cenários ou a trama. Não foi por acaso que o tempo rotulou esta como uma das mais importantes bandas sonoras da história da ficção televisiva.
Dois anos depois desta banda sonora o filme Twin Peaks: Fire Walk With Me, uma prequela que entre nós estreou com o título Os 7 Últimos Dias de Laura Palmer, procurou encontrar caminhos de desenvolvimento para a música a partir daqueles que a série televisiva tinha originalmente lançado. Por um lado há um acentuar das coordenadas jazzísticas, chegando mesmo a chamar Jimmy Scott para cantar em Sycamore Trees, e bluesey. Por outro lado abre-se espaço a uma presença de dois temas de um projeto com alma de blues e gosto pelo storytelling que Lynch então desenvolvia com Badalamenti. Chamavam-lhe Tought Gang e aqui se escuta, do seu repertório, os bizarros momentos de voz e cenografia entre o jazz e os blues de A Real Indication e The Black Dog Runs at Night, com voz do próprio Angelo Badalamenti. Em mais evidente continuidade com as sonoridades da música da série surgem alguns dos temas que encerram o alinhamento do disco, quer nos instrumentais mais ambientais The Pink Room ou Moving Through Time ou no reencontro com Julee Cruise, desta vez em Questions in a World of Blue, canção que no ano seguinte surgiria no álbum The Voice of Love, o disco que encerraria o ciclo das suas colaborações com Lynch e Badalamenti com quem, entretanto, havia protagonizado o filme-concerto Industrial Symphony – Vol. 1, que teve edição em cassete VHS e laserdisc em 1990 mas que continua a ser uma raridade da obra de Lynch que merecia melhor visibilidade na sua obra disponível em suportes vídeo.
Meses depois de uma reedição, com capa nova, da banda sonora de Twin Peaks, estas duas bandas sonoras, respetivamente de 1990 e de 1992, regressam ao mercado em edições em vinil que replicam as que originalmente então surgiram no mercado.
“Twin Peaks” (1990) ★★★★★ e “Twin Peaks: Fire Walk With Me” (1992) ★★★★, de Angelo Badalamenti (e convidados) estão disponíveis em novas prensagens em LP pela Warner Music.
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