A sociopolítica de Ariana Grande
Texto: GONÇALO COTA
A estreia de Ariana Grande em Portugal surge na agenda da digressão que acompanha Dangerous Woman, álbum lançado pela mesma altura que estaria marcado um concerto, que eventualmente foi cancelado, na última edição do Rock In Rio. A pop como proposição de empoderamento feminino e de identidades queer, o “fogo de artifício” como elemento estrutural na música e o atentado de Manchester a quente: o imaginário e o concerto de ontem à noite dão-nos pano para mangas se o objectivo for o de pensar política e sociologicamente Ariana Grande.
Num dos segmentos, que se inicia com um interlúdio preenchido de mensagens com um pendor feminista e de crítica à cultura de estupro, são-nos apresentadas canções que legitimam – ironicamente – representações de submissão e fetichização do corpo feminino. São nos apresentadas como forma de mobilização de um determinado empoderamento fundamentado na subversão às expectativas padronizadas de identidade de género através da libertação sexual. A hipersexualização em canções como Side To Side, seja nos vídeos ou nas letras, inscreve-se num modo de desejo heteronormativo hegemónico, que remete essencialmente para uma normalização destas práticas e representações e também para um imaginário profundamente pornográfico, justificando novas formas de desigualdades femininas e de perpetuação da cultura da submissão. O perigo reside quando olhamos para o nicho principal de fãs de Ariana Grande e compreendemos que são, na sua maioria, pré-adolescentes do sexo feminino e para as quais a cultura pop se torna pano omnipresente nesta etapa da formação da sua identidade e no lançar de possíveis expectativas.
Sendo a cultura pop espaço privilegiado na emergência dos movimentos sociais de libertação sexual que se iniciaram dos anos sessenta, a sua relação com a comunidade queer tem como objectivos centrais o normatizar de práticas que não se enquadram na matrix hetero e o desfazer dos sistemas de desigualdades. Não deixa de o ser na pop contemporânea. E Ariana Grande, tal como grande parte das divas pop, apropria-se do ideal de igualdade e incorpora-o no seu imaginário. Desde a própria narrativa familiar, já que o irmão de Ariana Grande é homossexual assumido, às imagens inclusivas no ecrã, de beijos entre casais hetero e homossexuais que surgem em algumas canções mais românticas, seja na incorporação do vogueing nas sequências inicias ou até mesmo na quantidade de bandeiras LGBT que contei – cinco no total – é de deduzir que, se o maior nicho de fãs são pré-adolescentes do sexo feminino, foi contudo a comunidade LGBT – particularmente homens homossexuais – quem teve maior peso no concerto de ontem.
Relegar a espectacularização da música, sendo esta a maior consequência da sua própria degeneração, é entrar num campo um pouco perigoso. Dos balões cor-de-rosa que desciam do topo da MEO Arena, aos jogos de luzes que variam em torno das diferentes melodias, aos bailarinos e adereços – mais simples do que se estaria originalmente à espera, mas que se afasta do lugar-comum de determinados concertos pop nos quais “mais é mais”, tornando-o assim mais sóbrio – servem como moldura ao imaginário que Ariana Grande construiu. Não os ter é inverter esse imaginário, afinal tão legitimo per se e nas suas funções. E também a sua própria persona, sendo que o exercício de condenação visa legitimar a hegemonia uma tipologia musical em detrimento de outra. Ao condenar estilos musicais, seja pela apresentação, pela sua forma ou conteúdo, estamos necessariamente a condenar plataformas de empoderamento (o exemplo do funk como plataforma de empoderamento das classes sociais mais baixas no Brasil ou, e recentemente, como espaço de empoderamento queer e feminista dentro dessas classes mais baixas). E, convenhamos, uns confettis só embelezam o registo vocal interessantíssimo, particularmente no controlo dos agudos, de Ariana Grande.
O incidente de Manchester alterou toda a dinâmica do concerto e, provavelmente, da própria digressão. Agiu na modificação, em tom de homenagem de algumas imagens e do alinhamento, onde se incluí agora uma versão de Somewhere Over the Rainbow de Judy Garland, e de um certo abatimento visível na entrega ao público e de poucas faltas. Apesar do ânimo nas coreografias de canções como Greedy ou Problem não terem faltado, é impossível pedir mais a quem há menos de um mês teve o próprio concerto como palco de um atentado terrorista.
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