Como em 100 anos evoluiu o modo de se olhar para Nicolau II
Texto: NUNO GALOPIM
Em março de 1917 Nicolau II abdicou. Foi o último czar russo, colocando então um ponto final a uma dinastia de 300 anos. Em julho de 1918, com apenas 78 dias passados numa casa em Ecaterimburgo na qual conhecia mais um episódio de um dia a dia passado sob vigilante detenção, o ex-monarca e os seus familiares foram assassinados, a meio da noite, na cave da Casa Ipatiev, a residência que os recebia (e que seria demolida em 1923). Este episódio representa o centro dos acontecimentos que, entre a narrativa do que sucedeu desde os instantes da abdicação e as consequências deste momento trágico, fazem as páginas de O Último dos Czares, livro de Robert Service que a Saída de Emergência acaba de publicar entre nós.
Professor em Oxford e historiador da Rússia moderna e da URSS, Robert Service tem já publicados vários títulos sobre o século XX russo, assim como biografias de Lenine, Trotsky e de Estaline. O autor passou por Lisboa há poucos dias e falou sobre este livro que o levou a conhecer melhor a figura de Nicolau II e também o mapa de acontecimentos em torno da morte trágica da sua família.
Foto: Wikimedia/Ave Maria Mõistlik
A morte de Nicolau II representou um dos episódios mais trágicos das monarquias europeias de inícios do século XX…
Os países europeus tinham regimes monárquicos constitucionais em alguns casos mais graves do que o que se via na Rússia. Mas o assassinato do ex-monarca e da sua família foi um acontecimento profundamente chocante, sobretudo pela morte de crianças. O regime comunista tentou inicialmente fazer de conta que não acontecera… Queriam manter as hipóteses em aberto no plano da política internacional. Com os alemães e, possivelmente no futuro, os ingleses, os franceses e americanos. E estes seriam hostis a um governo que mandou matar crianças. Ao mesmo tempo estavam preocupados com o próprio povo russo, que poderia começar a questionar as coisas de um modo mais intenso se soubesse o que acontecera. Por isso tomaram a decisão clínica de matar todos os Romanov que conseguissem apanhar. Porque queriam assegurar de que não haveria de um Romanov poder vir a liderar uma hipotética contrarrevolução.
E como tentou o novo regime russo esconder estes factos?
Fizeram-no numa cave, a meio da noite. Nos Urais… E depois desfizeram-se dos corpos. Tentaram incinerá-los… E tentaram manter uma disciplina entre si de modo a que ninguém falasse sobre o que acontecera fora dos círculos mais altos da hierarquia. Mas em Ecaterimburgo foi lançado um inquérito poucos dias depois. E o exército contrarrevolucionário começou a publicar os seus resultados no ocidente. Tornou-se impossível aos comunistas continuarem a esconder o sucedido. Até que passaram a dizer que, sim, que os tinham mandado matar os Romanov, justificando que o mereciam pelo modo como se tinham comportado quando estavam no poder e porque queriam travar uma ameaça contrarrevolucionária. Por volta de meados dos anos 20 já estavam por isso a contar a verdade.
Como é que a historiografia russa foi lidando, ao longo destes cem anos, com os acontecimentos de que aqui fala e os documentos que os permitem conhecer?
Nem todos os documentos ficaram na Rússia. Consultei alguns russos. Mas vi muitos dos que foram mudados para outros lugares, ou no Reino Unido ou na Califórnia. Os russos estão de resto a tentar hoje entrar em contacto com outros arquivos para poderem eles mesmos completar este retrato. Tem por isso de haver uma colaboração entre russos e ocidentais a bem da História. Muitos historiadores russos no presente estão a ter uma atitude radicalmente diferente quanto à morte dos Romanov face ao que era feito pelos historiadores comunistas. Têm uma visão positiva sobre os Romanov e lamentam o modo tão brutal como foram mortos. O que tento fazer no meu livro é, contudo, sugerir que, tal como era errado quando os historiadores comunistas defenderem que tudo o que os Romanov fizeram foi mau, é igualmente errado dizer que tudo o que Nicolau II fez ou pensou foi bom. São pontos de vista não históricos. E é preciso ter os dois pontos de vista. Nicolau II era um homem de família decente, uma figura modesta nas suas relações pessoais, não vivia uma vida de luxos. Era um rapaz do campo com um gosto pelas questões militares… Mas no reverso da medalha, era um antissemita virulento e partilhava algumas das visões que Hitler mais tarde possuiu. Também tinha uma opinião bizarra e nada realista sobre o povo russo. Achava que era nobre, decente, quase perfeito e que precisava de um líder forte. E na sua maneira de ver os judeus estavam a montar uma conspiração internacional contra o povo russo. Não deixa de ser estranho porque, depois de 1917, foi referido como Nicolau, o sanguinário.
Quando mudou a perceção da historiografia russa sobre esta figura e o seu papel na história? Foi depois da ‘glasnost’?
Começou a mudar sob Gorbachev, com alguns historiadores a poderem afirmar visões positivas sobre Nicolau II. Mas houve um encorajamento maior nesse sentido depois da derrocada da URSS com Boris Ieltsin, que se resto se referia ao período soviético como um “pesadelo totalitário”. Foi então que se tomou a decisão de exumar e sepultar novamente os restos mortais dos Romanov na Catedral de São Pedro e São Paulo [em São Petesburgo].
A catedral tornou-se então num santuário em memória do czar?
Sim. E como uma forma de expiar o modo como os Romanov encontraram a morte. Vladimir Putin está a usar, de resto, esta história como um modo de dizer aos russos que as revoluções têm consequências seriamente negativas para as pessoas. E que o melhor é haver paz e estabilidade interna… E por isso o vemos onde está, apesar de ser um ex-comunista e um ex-agente da KGB. Ele é hostil à revolução de Lenine. E por isso aprova um tratamento positivo para a memória de Nicolau II. Uma revolução russa nos dias de hoje não seria uma boa notícia para Putin.
Ou seja, Nicolau II ainda é uma figura que a propaganda pode usar, cem anos depois da revolução?
Havia uma frase na Rússia soviética que dizia “Lenine viveu, Lenine vive, Lenine viverá”… E podemos dizer o mesmo sobre Nicolau II… Ele vive! Tem uma grande influência sobre a ideologia russa.
Há romagens aos locais onde o czar e a família imperial viveram o cativeiro antes da morte?
Há, sim… Em Ecaterimburgo há quem deixe flores. Há um grande respeito a visitas de famílias reais à Rússia. Sobretudo com membros da família real britânica, que têm um parentesco próximo com a russa… São ali muito respeitados. Mais do que no Reino Unido [risos].
Fazendo um exercício de história alternativa quão diferente teria sido a história russa se não tivesse havido uma ordem para matar os Romanov?
Não sei o que teriam feito com eles se não os tivessem mandado matar… Crio que teriam de acabar a fazer o que mandavam os czares face a indivíduos incómodos. Mandavam pessoas para mosteiros, isto se os não matavam… Ou então enviavam para exílio administrativo na Sibéria, a milhares de quilómetros das áreas povoadas… Não os autorizariam a sair dali… Mas teriam de levantar uma zona de segurança apertada, o que seria difícil. Do seu ponto de vista era um perigo se alguém ali entrasse e os resgatasse.
A morte era ali a opção mais fácil?
Sim. Tomaram sempre as opções mais fáceis para resolver os problemas. Quando havia problemas políticos sérios resolviam-nos eliminando as suas manifestações físicas .
Ou seja, a morte dos Romanov foi um episódio fulcral para a solidificação de um novo poder na Rússia de então?
Matando não apenas os czares, mas também padres, aristocratas, industriais… Matando qualquer possibilidade de que o antigo regime, fosse em que plano fosse, tivesse uma hipótese de poder regressar. Não queriam apenas ganhar a guerra civil. Queriam impor uma paz civil. Uma paz civil brutal.
Teve facilidade de acesso aos documentos que necessitou de consultar para poder escrever este livro?
Tenho a sorte de estar ligado à Hoover Institution na universidade de Stanford (Califórnia), que tem um enorme arquivo sobre a história russa do século XX. É o maior arquivo sobre este tema fora de Moscovo. Mas ao passo que em Moscovo nem sempre podemos ver o que queremos, na Califórnia, sim, podemos ver…
Já tinha escrito vários livros sobre a história russa do século XX, mas nunca antes tivera o último czar no centro das suas atenções… O que lhe trouxe de novo este livro?
Nunca antes tinha escrito sobre os czares… E abriu novas perspetivas… Permitiu-me olhar para partes da sociedade que até aqui só tinha contemplado no ponto de vista daquilo que os comunistas fizeram para as suprimir. Com este livro olho para esses grupos pelos seus pontos de vista, observo as suas práticas e assunções. E os seus modos de vida… Foi um processo de auto-educação.
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