Visões da América, segundo Bernstein
Texto: NUNO GALOPIM
O tempo tem vindo a dar razão aos que cedo reconheceram em Leonard Bernstein não apenas uma das mais vivas vozes de uma identidade musical americana. Herdeiro de, por um lado, toda uma herança maior da música ocidental e, por outro, atento observador da América do seu tempo, fez da sua música uma expressão do seu aqui e do seu agora, cruzando linguagens várias, muitas então vistas como realidades exteriores aos “cânones”, encontrando no jazz, na música popular e até mesmo nos palcos da Broadway as referências que lhe deram, devidamente assimiladas, importantes marcas de identidade. Figura de importante perfil político, fez da sua música, sobretudo a que expressava uma carga narrativa, espaço para aprofundar mais ainda toda uma série de visões sobre a cultura e sociedade americanas do século XX.
Norte-americano, de ascendência ucraniana, teve importante carreira como mastro, compositor e também enquanto comunicador, aqui através da televisão, que dele fez um dos rostos globalmente mais reconhecidos da música clássica nas décadas de 50 a 70. Como maestro teve uma história de sucesso desde muito cedo, fazendo carreira em diversas grandes orquestras mundiais, sobretudo a Filarmónica de Nova Iorque, que comandou durante 12 anos. É reconhecido o papel determinante que teve na divulgação da obra sinfónica de Mahler, assim como na de grandes compositores americanos do século XX.
Muitas vezes os feitos do comunicador televisivo e do maestro “que dançava” (o que incomodava alguma crítica mais sisuda) parecem ofuscar a importantíssima obra que nos deixou como compositor e que remonta a finais dos anos 30, estendendo-se até 1990. Pela sua obra, que escapou aos interesses pela exploração da atonalidade que cativou muitos dos seus contemporâneos, passa uma consciência do lugar geográfico (e portanto cultural) em que viveu, nela encontrando-se a essência de uma identidade americana que, por um lado, aceitava a herança da tradição clássica ocidental (em particular procurando pistas nas sugestões de grandes mestres americanos como Coplan ou Ives), mas a ela juntava uma atenção pelo quotidiano onde nascia. Ou seja, reflectia uma vivência próxima com o jazz, a Broadway e até mesmo (pontualmente), a nova música pop.
Deixou-nos três soberbas sinfonias. Uma série de magníficas peças para bailado. Musicais como On The Town, Wonderful Town ou West Side Story. A banda sonora de Há Lodo No Cais. As óperas Trouble In Tahiti e A Quiet Place. A espantosa Missa (uma reflexão sobre a relação do homem com a fé). E, obra-prima absoluta, a opereta cómica Candide que, estreada nos anos 50, foi alvo de revisões várias até conhecer a sua elegante forma final em 1989.
Parte desta obra é agora recuperada em Berstein – The Composer, que recupera um conjunto de gravações que, sob a sua direção ou de outros maestros, registaram grande parte da sua obra como compositor até ao período, já nos anos 80, em que integrou o catálogo da Deutsche Grammophon.
A caixa, que recupera um conjunto de gravações originais (reproduzindo também a miniatura da capas das edições em vinil), inclui as suas três sinfonias, peças para bailado (como Fancy Free e Dybukk), musicais e música para teatro (como On The Town, na sua versão integral, Peter Pan, Wonderful Town, ou West Side Story, tanto na versão de palco como na de cinema), uma das suas duas óperas (Trouble In Tahiti), a cantata Chichester Psalms, arranjos para concerto de música para cinema (Há Lodo No Cais), a imponente Missa, duas versões de Candide (uma de 1956 e outra de 1974) ou pequenas (e menos divulgadas) peças como La Bonne Cuisine ou I Hate Music!. As gravações apresentam em grande parte Bernstein frente à Filarmónica de Nova Iorque, de que foi director musical entre 1958 e 69. E envolvem solistas como Isaac Stern, Philippe Entremont e Benny Goodman. A caixa inclui ainda três discos com variadas interpretações de canções de Bernstein, um dedicado a peças de música de câmara, um com gravações pelo ensemble Canadian Brass e ainda dois dedicados a incursões jazzísticas pela obra do compositor. Ao todo são 25 discos, todos eles remasterizados a partir dos masters originais.
Entre as gravações históricas aqui apresentadas conta-se o primeiro registo em disco da Missa, que é uma das mais interessantes criações de Leonard Bernstein como compositor, traduzindo (como aconteceu em diversos outros momentos da sua obra, nomeadamente West Side Story ou Candide) uma visão transversal e ecléctica da música por parte de um homem que nela soube soube projectar o seu tempo e a sua identidade cultural. Ecos dos palcos da Broadway, gospel e até música pop juntam-se aqui a uma ideia que aceita igualmente as genéticas da tradição clássica ocidental.
No seu tutano é evidente uma reflexão sobre a fé, mas os textos cantados olham mais longe, ora abordando questões na esfera do mundo político ora olhando interiormente num debate sobre identidade.
Entre os tesouros desta reedição surgem as duas primeiras edições em disco de Candide, numa versão diferente daquela que, em finais dos anos 80, Bernstein apresentou numa nova abordagem, que então foi registada pela Deutsche Grammophon (daí não surgir no âmbito desta caixa).
Bernstein era já um maestro aclamado e um compositor reconhecido quando, em 1956, apresentou Candide, um novo “musical” em Nova Iorque, baseado no texto homónimo de Voltaire… O teatro musical estava já longe de representar uma novidade na sua obra que, na altura, somava já os musicais On The Town (1944) e Wonderful Town (1953) e a ópera Trouble In Tahiti (1952). Candide, contudo, revelou-se, a principio, um caso um tanto complicado…
Com libreto original de Lilian Hellman criticado como demasiado sério perante não apenas o texto original de Voltaire mas também a música de Bernstein, Candide dividiu opiniões aquando da sua estreia na Broadway. Apesar da opinião menos favorável de muitas críticas, a música de Candide revelou uma vez mais as capacidades de cruzamento de linguagens (e de comunicação) de Bernstein, tendo a Abertura sido tocada por mais de cem orquestras no ano seguinte… O tom satírico do texto de Voltaire, inicialmente publicado em 1759 (e desde logo proibido em cidades como Paris ou Genebra e acrescentado ao índex do Vaticano), encontrou a adaptação mais fiel à sua identidade, ao mesmo tempo revelando o melhor de Bernstein como compositor atento às realidades sociais e políticas do seu tempo, não faltando citação subliminar aos “trabalhos” da comissão do senador McCarthy numa cena que tem a Lisboa pós-terramoto de 1755 por cenário.
Histórias como estas não faltam para (re)descobrir numa caixa que é acompanhada por um booklet que apresenta a ficha técnica completa de cada disco e junta ainda um ensaio recente escrito por John Mauceri.
“Leonard Bernstein – The Composer” está disponível numa caixa de 25 CD editada pela Sony Music.
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