À margem, de certa maneira
Texto: NUNO GALOPIM
Um dos grandes cronistas de Nova Iorque, Joseph Mitchell (1908-1996) vivia a sua escrita longe das figuras públicas, a quem chamava “moedores de ouvidos”. Jornalista, com parte significativa do seu trabalho publicado na New Yorker, assinou entre as suas crónicas cenários habitados da cidade que descobriu por alturas do crash de 1929 e que viveu e descreveu em textos que publicou nos anos seguintes, alguns deles reunidos mais tarde em livro. A sua é uma escrita rica em figuras, histórias e imagens, mas sob uma contenção que sabe, com pouco, dizer muito. Porque, dizia ele mesmo, “não pode haver mais praga para um jornal que um jornalista que se põe a tentar escrever literatura”.
Joseph Mitchell trabalhou, em início de carreira, nos anos 30, como jornalista para diversos periódicos nova-iorquinos. Natural de Iona (na Carolina do Norte), tinha chegado a Manhattan em 1929 com 21 anos, já sob um futuro universitário fracassado pela absoluta inaptidão com a matemática. Salvo os meses em que atravessou o mar, até Leninegrado (hoje São Petersburgo), a bordo de um navio, regressando logo depois, viveu e descobriu Nova Iorque em busca de histórias e suas personagens, que este livro assim retrata. Apesar de, no final do volume, se registarem encontros com George Bernard Shaw, Gene Krupa e algumas mais figuras públicas, Sou Todo Ouvidos, a sua melhor antologia de crónicas (publicada entre nós pela Âmbar), vive essencialmente de histórias e retratos de anónimos com “uma intimidade velha de anos com a pobreza”.
Apesar da excelência das antologias de crónicas, O Segredo de Joe Gould é talvez a sua obra-prima. O livro junta na verdade dois perfis da mesma figura, um publicado em 1942, o segundo em 1964. Em ambos o protagonista é Joseph Ferdinand Gould, filho de uma das mais antigas famílias do Massachussets, licenciado em Harvard mas depois tendo optado por romper todos os laços, rumando a Nova Iorque para viver um dia a dia de errância que dedicava essencialmente a um trabalho monumental: a escrita de uma “História Oral do Nosso Tempo”. Era uma história diferente daquela que regista os estadistas, as decisões, os factos, a economia, a política… Era uma história que nota como a vida é feita de pequenos nadas, observando as figuras do quotidiano nos seus comportamentos e ações. No fundo, não muito distante dos olhares sobre Nova Iorque que Joseph Mitchell havia redigido anos antes. E talvez por isso tenha nascido entre ambos uma rara afinidade que este livro tão bem traduz. É claro que a dada altura não fica claro se há ficção diluída entre este retrato. Mas esse é um dos encantamentos maiores deste livro. Um segredo, como o título tão bem sugere.
Já antes disponível entre nós, O Segredo de Joe Gould regressa agora às livrarias numa nova edição pela D. Quixote que inclui o prefácio de António Lobo Antunes que já constava da edição original e junta ainda uma nota do tradutor.
“O Segredo de Joe Gould”, de Joseph Mitchell, com tradução de José Lima, é uma edição de 207 páginas da D. Quixote.
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