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Era uma vez a era de Aquarius…

Texto: NUNO CARVALHO

Com uma interpretação extraordinariamente convincente de Sonia Braga, “Aquarius”, a segunda longa-metragem do ex-crítico Kleber Mendonça Filho, é um retrato da resiliência de uma mulher que reverbera o duelo entre o Brasil de Dilma e o de Temer. O filme chega agora ao DVD.

Não será um mero jogo de palavras dizer que, com Michel Temer no poder, é caso para um artista, no Brasil atual, temer pela sua liberdade e dignidade. De resto, quando Aquarius, a segunda longa-metragem do realizador e ex-crítico Kleber Mendonça Filho, foi exibido no Festival de Cannes, em maio do ano passado, decorria o processo de impeachment de Dilma Rousseff, que, como é sabido, culminaria com a destituição da primeira mulher a tornar-se presidente do Brasil, tendo o filme tido uma ampla projeção nos media brasileiros devido aos protestos levados a cabo pela sua equipa na passadeira vermelha da Croisette.

Aquarius é um filme feito por quem certamente simpatiza mais com os valores defendidos pelo Partido dos Trabalhadores da ex-presidente e vê em Temer um representante dos interesses dos poderosos. Na verdade, o filme de Kleber Mendonça Filho é uma espécie de “obra de resistência” contra uma face mais cruel e desumana de um Brasil em que, como explicou à MdE a realizadora Anna Muylaert (autora de Que Horas Ela Volta?), independentemente de tudo o resto, Dilma Rousseff foi muito desrespeitada pelo simples facto de ser mulher.

Dificilmente o realizador brasileiro poderia ter feito um filme mais político do que Aquarius, embora não se trate de maneira nenhuma de uma história em forma de arenga panfletária ou primariamente ideológica. Bem pelo contrário, pois, ainda que tenha fundações solidamente políticas e evidentes preocupações sociais, esta história de uma escritora e ex-crítica de música viúva de 65 anos que começa a ser pressionada de forma cada vez mais insidiosa por uma empresa de construção para vender o seu apartamento – o único que resiste ocupado em todo o edifício (um condomínio dos anos 1940, no Recife, remetendo o título do filme para o nome deste) – é, antes de mais, um refinado e veríssimo retrato focado na resiliência e orgulho de uma mulher, Clara (numa interpretação incrivelmente convincente – passe o paradoxo! – e fortíssima de Sonia Braga, daquelas que estão muito acima de quaisquer Óscares ou outros prémios mediocremente politizados), que toma uma história pessoal e quotidiana como microcosmos que reverbera uma realidade social, política e económica de uma dimensão muito mais vasta e abrangente.

Sonia Braga prova aqui, uma vez mais, que é uma belíssima atriz, uma verdadeira força da natureza, e Aquarius é todo ele construído em torno da sua personagem, uma mulher autónoma, correta, com um sentido de dignidade pessoal muito forte, mas também combativa e desafiante perante aquilo que se apresenta como o rosto de um progresso ameaçador. Para Diego (Humberto Carrão), o filho do dono da construtora, responsável pelo projeto que visa a demolição do condomínio, a era de Aquarius (o edifício) já era. Agora, em nome da modernização e do progresso (mas também da progressão exponencial da conta bancária dos predadores do negócio imobiliário), há que dar lugar ao novo (e aos novos). Como diz Clara à filha quando esta tenta convencê-la a aceitar a vultuosa compensação financeira em troca do apartamento onde viveu uma vida e que está habitado por memórias queridas, “quando você gosta é vintage, quando você não gosta é velho”.

“Aquarius”, de Kleber Mendonça Filho, com Sonia Braga, Humberto Carrão, Maeve Jinkings e Irandhir Santos, tem agora edição em DVD pela Midas Filmes.

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