Ainda a abanar o habitual
Texto: NUNO GALOPIM
Chegados a 2013 tinham já passado sete anos desde o lançamento de Silent Shout e, com ele, uma das mais importantes contribuições da década dos noughties para a história da canção servida por ferramentas electrónicas. Pelo caminho, e além de lançarem o registo ao vivo Silent Shout: A Visual Experience (ainda em 2006), Karin Dreijer Andsersson editou um álbum pelo projeto Fever Ray, o irmão Olof Dreijer tirou um curso em estudos de género na Universidade de Estocolmo e, juntos, apresentaram em 2010, a ópera Tomorrow In a Year. Parte destas experiências refletiram-se então na construção de um álbum que, apesar de cruzar afinidades pontuais com qualquer destes momentos, na verdade olhava mais adiante e propunha um dos mais radicais e consistentes ensaios sobre a forma da canção que ouvimos na presente década, afirmando-se Shaking The Habitual como um potencial candidato a, num futuro próximo ser, precisamente pelo seu não alinhamento por correntes em voga ou modas, um importante retrato, distinto e pessoal, dos ecos dos tempos que estamos a viver.
Se tematicamente neste disco, que pedia o título emprestado a Foucault, as canções traduziam uma focagem de interesses nas questões da identidade de género, do nosso comportamento como sociedade e no ambientalismo, musicalmente o silêncio de sete anos dos The Knife acabava rompido por algo que era todavia mais do que um mero compromisso entre a escrita de canções (levada a tão distinto patamar em Silent Shout) e a criação de acontecimentos de mais intensa carga cénica que havíamos encontrado na ópera Tomorrow In a Year.
Shaking The Habitual revelava uma experiência nos antípodas do melodismo pop tão bem explorado e moldado às características plásticas da voz de Karin e às visões de sonoridade de Olof entre Deep Cuts e Silent Shout. Assim como seguia um caminho distante da ordenação mais plácida de elementos que nos faziam evocar a figura de Darwin em Tomorrow In A Year.
A música, intensa, angulosa e por vezes mesmo aparentemente desconfortável (sensação que a progressiva habituação certamente resolveu), transcendeu o espaço das electrónicas para acolher também outras fontes de som, nomeadamente percussões, num registo desafiante que pode ter relativo paralelo na forma como a obra recente de Scott Walker tem promovido a integração de outras fontes de acontecimentos sonoros no seu corpo musical.
A escrita procurava depois romper os espartilhos normativos da pop, ensaiando deambulações mais longas, a construção de ambientes e espaços instrumentais. A Tooth For An Eye ou Full of Fire (que chegava a citar o clássico Let’s talk About Sex das Salt’N’Pepa para lançar a agenda temática “let’s talk about gender”) revelou acontecimentos ásperos, estranhos, inicialmente talvez mesmo incómodos, mas afinal profundamente sedutores. Como contraste encontrámos, mesmo assim, em Whithout You My Life Would Be Boring e, sobretudo, em Wrap Your Arms Around Me, os ecos da genética pop do passado recente do grupo.
A pulsão experimental que por vezes cativa alguns dos mais visionários (e musicalmente dotados) dos nomes nascidos em terreno popular conheceu aqui mais um notável episódio. A sua história é antiga, passando pelas desafiantes experimentações sónicas que os Beatles tatearam no clássico Sgt. Peppers (não sendo de admirar até a representação de Stockhausen na “galeria” de imagens da capa do disco), pela colaboração de Frank Zappa com Pierre Boulez (em Boulez Conducts Zappa: The Perfect Stranger), pelas deambulações mais recentes de Scott Walker, os dois primeiros ciclos de canções de Owen Pallett (ainda enquanto Final Fantasy) ou algumas das fugas para lá da pop da islandesa Björk (e não foi por acaso que John Tavener compôs uma peça vocal para a sua voz).
Mais do que em Tomorrow In A Year, uma experiência áudio-visual que era desde logo apresentada como uma ópera (e é uma das mais interessantes expressões contemporâneas desse grande universo musical), Shaking The Habitual propôs um novo olhar sobre a canção, a sonoridade, num quadro temático consistente. Não era pêra doce. Pediu tempo e dedicação. Podia não ser uma meta e olhar ainda parte de um caminho. Poucos discos olham para o presente sob esta capacidade de refletir sobre o que existe (nos temas) e projetar caminhos a seguir (nas formas). No fim apontava a novos horizontes para nos fazer acreditar que esta viagem podia valer a pena… Pela minha parte, embarquei. Até porque, de vez em quanto, é preciso embarcar em algo que faça “abanar” o habitual. E ainda hoje está bem alto na minha lista dos melhores discos da presente década.
Apresentado como fim de ciclo para os The Knife, o álbum Shaking The Habitual teve depois expressão ao vivo num espetáculo que juntava à música uma dimensão performativa igualmente empolgante. O alinhamento, se bem que centrado nas canções do álbum de 2013, abria mesmo assim espaço a episódios de outros discos. Ali reencontrámos Silent Shout, Bird (do álbum de estreia The Knife, de 2001) ou o icónico Pass This On, embora sob nova e mais intensa arquitetura rítmica. Pelo meio o poema Colective Body Possum, de Jess Arndt, explicitava todo um discurso e uma atitude em sintonia com as temáticas e pontos de vista levantados pelo disco. E que bom que é, agora, poder reencontrar o registo ao vivo da passagem desta digressão pelo Terminal 5, em Nova Iorque, num lançamento que inclui tanto o áudio como o vídeo, e que faz deste um daqueles raros discos ao vivo que valem mesmo a pena ser escutados (e vistos) vezes sem conta.
“Live at Terminal 5”, dos The Knife, está disponível em CD + DVD, nas plataformas digitais (áudio e vídeo), numa edição da Play It Again Sam ★★★★★
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