Fuligem e sangue na tapeçaria londrina
Texto: DIOGO SENO
É um cenário por demais conhecido, tanto do cinema como da literatura: o mistério vitoriano volta recorrentemente à cultura popular, embora o seu imaginário já não capture a atenção do público como noutros tempos. Pode dizer-se que Os Crimes de Limehouse é, assim, um objecto fora de tempo.
Trilhando um caminho similar ao que os irmãos Hughes percorreram na sua adaptação da banda-desenhada de Alan Moore, From Hell, ou, até certo ponto, Tim Burton no seu musical grand guinol, Sweeney Todd, a segunda longa-metragem de Medina apresenta uma Londres vitoriana mergulhada em fumos e nevoeiro, onde os recantos escondem crimes e vícios inimagináveis.
No final do século XIX, uma série de assassinatos violentos e sinistros ocorrem num bairro do Leste de Londres, Limehouse. A natureza macabra dos assassinatos e a sua difícil explicação fazem espalhar o medo de uma criatura sobrenatural: o Golem. Kildare (interpretado por Bill Nighy, que substituiu Alan Rickman quando este teve de se afastar por problemas de saúde que acabaram por o vitimar), um inspector desacreditado, “por não ser dos que casam”, cai de pára-quedas neste difícil caso, para servir de bode expiatório na eventualidade, bastante provável, de este não ser resolvido.
Ao mesmo tempo, um aristocrata com pretensões de escritor, aparece morto na sua própria casa. Trata-se de John Cree, nada mais nada menos que um dos quatro suspeitos dos assassínios. A sua mulher, Lizzie, é a principal suspeita da sua morte, e a narrativa constrói-se largamente em flashbacks enquanto esta conta a sua ascensão de pobre moça de recados a super-estrela burlesca do music hall, e o posterior casamento com o escritor falhado. Acreditando totalmente na inocência da rapariga, Kildare empenha-se em provar a culpa de Cree, não sem antes afastar do caminho os outros suspeitos, todos eles bastante reconhecíveis: Karl Marx, George Gissing e Dan Leno (responsável pela companhia que trouxe fama a Lizzie e amigo próximo desta).
É uma tapeçaria de personagens e situações que inclui actores, escritores, aristocratas, homens de negócios, prostitutas, pescadores e pequenos comerciantes e que pinta o século XIX nos seus aspectos mais supersticiosos e injustos. A história de Lizzie e da sua ascensão acaba por funcionar obliquamente como comentário à condição feminina naquela sociedade, mas, tal como a acenada homossexualidade de Kildare (e a sua relação cúmplice com o polícia que o ajuda no caso), não se encontra satisfatoriamente desenvolvida.
As disputas entre os diferentes personagens (e mesmo as figuras históricas invocadas, como Marx e Gissing), servem para mostrar a uma luz pouco favorável a ânsia de fama e a necessidade de legitimação. Aliás, é essa vontade de deixar o seu próprio nome inscrito nos livros, independentemente da moralidade dos actos que levaram a tal reconhecimento, que prova ser a justificação dos crimes hediondos, numa concretização cliché da ideia do crime como “arte suprema”. Não se esperaria algo completamente sofisticado num entretenimento de género como este, e nem seria esse o objectivo deste filme, mas alguma subtileza não faria mal. No entanto, a obra de Medina tem a seu favor uma atmosfera bem desenhada, percorre e povoa com brio o labirinto londrino do século XIX, dos music halls aos boudoirs, das prisões à biblioteca, e uma narrativa que avança sem percalços e que conta com alguns bons momentos de entretenimento macabro e perturbante. E tem, sobretudo, um elenco competente, onde se destacam, para além do taciturno e elegante Bill Nighy, os novatos Olivia Cooke, que interpreta a dissimulada e ambígua Lizzie com aprumada versatilidade, e Douglas Booth, cujos delicados maneirismos dão vida a Dan Leno.
“Os Crimes de Limehouse”, de Juan Carlos Medina, com Bill Nighy, Olivia Cooke, Douglas Booth, Eddie Marsan. Distribuído por NOS Audiovisuais
Republicou isto em O LADO ESCURO DA LUA.
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Nos falamos em breve, abraço!
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