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Os filmes do Queer Lisboa 21

Texto: DIOGO SENO

“God’s Own Country”, que abriu o festival (e repete hoje) é uma história de descoberta da orientação sexual que evita os clichés melodramáticos de tal tipo de narrativa em troca de um enquadramento natural, embora com percalços da sexualidade como um aspecto (apenas mais um) da vida humana.

“As You Are”, de Miles Joris-Peyrafitte

O título parece ser uma referência à canção dos Nirvana, uma das muitas bandas zangadas que os protagonistas citam nesta primeira longa-metragem de Miles-Joris Peyrafitte, e diz algo do filme e das intenções do realizador: pintar o retrato de uma juventude insatisfeita e confusa, que descobre a sexualidade e o seu lugar no mundo entre a apatia e os extremos. Um território percorrido por outros cineastas americanos, como Gus Van Sant ou Larry Clark. Aliás, tal como os filmes desses dois realizadores, As You Are situa-se algures na década de 90, embora o sentido de lugar e de tempo histórico do filme seja completamente difuso, por contraponto à especificidade temporal e geográfica dos citados. E sob o peso da comparação, o filme de Peyrafitte soçobra, não só porque acrescenta pouco a esse universo, como por ter todos os tiques e inseguranças de um primeiro filme.

A opção de contar a história em flashbacks, em contraponto a um interrogatório, não é só redundante e desnecessária como confunde a psicologia das personagens, não iluminando as suas motivações ou o passado, parecendo uma cambalhota estilística mal dada. A exploração da sexualidade é velada, tacteante, tal como os adolescentes a experienciam, mas a violência estilizada é de mau gosto, e as mudanças frequentes de tom não fazem jus à história urgente que se pretende contar. As alternâncias entre a atmosfera de filme de terror (demarcada pelos sons de sintetizadores ou guitarras distorcidas) e o drama contemplativo (em que o rock instrumental se chega à frente) acentuam as fragilidades de uma narrativa pouco original. Não quer isto dizer que não haja aqui alguns elementos interessantes, como por exemplo uma ou outra cena em que a opção pelos planos longos se mostra ajustada ao conteúdo emocional e narrativo e dois actores (Owen Campbell e Charlie Heaton) que sabem conferir a fragilidade e turbulência emocional pedida às suas personagens. Mas, tal como sublinha bem o final, o realizador parece não saber o que queria fazer desta história.

“God’s Own Country”, de Francis Lee
O momento da estreia da primeira longa-metragem de Francis Lee deve ter tido alguma influência na recepção calorosa com que o filme foi presenteado pelos outros festivais onde passou. Na Inglaterra do pós-Brexit, e numa Europa com dificuldades em olhar para o futuro, alguns temas desta estreia ganham especial ressonância.

Johnny, um rapaz que divide o seu quotidiano entre as tarefas de uma quinta decadente no Yorkshire e as noites de sexo casual e bebedeira – é o protagonista, interpretado com aspereza pelo actor Josh O’Connor, pelo qual a câmara se vai mostrar enamorada até ao fim – debate-se com uma tristeza e apatia sem fundo que serão abaladas pela chegada de um imigrante romeno, Gheorghe, à quinta para ajudar com os animais. A realidade com que se depara – métodos de pecuária ineficientes e uma família devastada pelo abandono da mãe e uma doença debilitante para o pai, além do bloqueio emocional de Johnny – é desesperançada.

O registo da realização enquadra-se no que se pode considerar um realismo cru, historicamente rico no cinema britânico, aqui adicionado de uma camada quase documental na relação dos actores com o meio ambiente, para a qual contribui grandemente o trabalho esplêndido do director de fotografia, Joshua James Richards. Lee imaginou um romance pastoral gay em que o desejo se desenrola em tumulto e intimidade com a brutalidade da natureza, e o cenário fez o resto para granjear as comparações com Brokeback Mountain. Mas muito separa os dois filmes, sobretudo nas decisões narrativas do realizador. Trata-se de uma história de descoberta da orientação sexual que evita os clichés melodramáticos de tal tipo de narrativa em troca de um enquadramento natural, embora com percalços (sem eles não havia história), da sexualidade como um aspecto (apenas mais um) da vida humana.

Neste sentido, o naturalismo bruto – do vento fustigante, da lama, dos cenários campestres imensos mergulhados em nevoeiro e onde se parece viver num permanente entardecer melancólico aos nascimentos das crias mostrados na totalidade e sem qualquer pudor ao sexo confuso, sujo e urgente dos dois protagonistas – fortalece a história que está a ser contada. O encontro inicialmente tumultuoso de Johnny e Georghe dá lugar a um crescendo de ternura que resgata o primeiro e lhe oferece o vislumbre de um futuro até ali impensável. A passagem do negrume inicial para uma abertura à emoção, cheia de correntes emotivas que se misturam, desenrola-se de forma silenciosa e equilibrada, atenta a olhares e gestos: uma carícia entre amantes abre caminho a uma maior comunicação entre pai e filho via umas mãos que se tocam, os objectos, sobretudo a roupa, espoletam a catarse de medos e inseguranças. Até chegarmos ao luminoso final, onde o registo realista não impede um quase conto de fadas, num gesto de optimismo admirável que fornece uma óptima nota esperançosa para este presente conturbado, e para o início de mais uma edição de Queer Lisboa.

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