“Ultra”: Sinais de uma crise ultra… passada
Texto: NUNO GALOPIM
Os anos 90 foram, para os Depeche Mode, um período de profundas transformações e de verdadeiro desafio à sobrevivência. Da quase fatal overdose sofrida pelo vocalista Dave Gahan à saída de Alan Wilder – que optou por concentrar o seu tempo no projeto pessoal Recoil – os anos que se seguiram ao final da Devotional Tour quase sugeriam que um fim poderia estar na linha do horizonte. A vontade em continuar manteve o projeto vivo, embora reduzido a trio. Ao mesmo trio que gravara A Brokem Frame, o disco de 1982 que obrigara Martin L. Gore a tomar as rédeas da composição após a saída de Vince Clarke em 1981. Este era, contudo, um trio com vivências entretanto acumuladas. Pessoais e musicais. E na hora de regressarem a estúdio não só as somaram entre si como entenderam que, dada a ausência do pensador da sonoridade e do mais meticuloso processo de gravação e moldagem das canções, era chegada a hora de chamar alguém mais ao processo de produção do novo disco. Chamaram Tim Simenon. E chamaram bem.
Mentor do projeto Bomb The Bass – um dos grupos nascidos do boom que a house vivera no Reino Unido na segunda metade da década de 80 – e entretanto com créditos na produção para terceiros já confirmados no álbum Adam’N’Eve de Gavin Friday e remisturas para os Massive Attack ou David Bowie, Tim Simenon levou a estúdio novos horizontes de possibilidades. As aulas de canto que Dave Gahan entretanto tirara e os desafios que Martin L. Gore ensaiou numa procura de caminhos que traduzissem heranças da música antes feita pela banda mas que desenhassem também novas caminhadas, juntaram-se num dos momentos mais inspirados que os Depeche Mode viveram depois dos oitentas (nos quais gravaram, mesmo assim, os mais marcantes dos seus discos).
Ultra é um disco que mantém um certo característico negrume bem intacto, mas que abre festas de luminosidade. E se Barrel of a Gun junta à discografia um herdeiro direto do que I Feel You revelara anos antes e Freestate mantém firme uma vontade em assimilar o trabalho das guitarras segundo genéticas herdadas dos blues, já temas como Sister of Night, The Bottom Line e o superlativo Home (que concilia uma visão orquestral com a incorporação de uma arquitetura de batidas bem atual) sublinham que os desafios foram levados a bom termo. Tal como o fez It’s No Good, canção que, mesmo com soluções de composição distintas acaba por se mostrar como uma sequência natural do cânone central que a identidade da banda foi definindo, e com valor acrescentado nas novas qualidades interpretativas entretanto descobertas pelo vocalista. The Love Thieves explora novas qualidades no detalhe da cenografia. Já Jazz Thieves sugere abertura de caminhos a uma dimensão mais cinematográfica, muitas vezes outrora explorada em lados B, mas desta feita inteligentemente incorporada no alinhamento de um álbum… Deu então que pensar sobre o que faria Martin L. Gore se um dia fosse chamado para trabalhar em cinema. Quem sabe, um dia…
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