Aconteceu há 50 anos…
Texto: NUNO GALOPIM
Como recriar um conjunto de factos e assegurar um claro enquadramento no contexto em que ocorreram sem tropeçar na solução fácil e bem arrumadinha do registo do docudrama. É precisamente uma resposta a essa a que podemos encontrar em Detroit, filme que confirma Kathryn Bigelow, depois dos magníficos Estado de Guerra e 00.30 Hora Negra, como uma das grandes retratistas de histórias americanas nossas contemporâneas no cinema do nosso tempo.
Face a narrativas do nosso presente que serviam de cenário a esses dois outros filmes havia, desta vez, uma realidade com 50 anos de vida a levar ao grande ecrã: os incidentes no Holtel Algiers, que tiveram lugar durante os violentos confrontos raciais ocorridos em Detroit em 1967. E por isso mesmo entramos em Detroit com uma série de sequências que, entre imagens de arquivo e recriações encenadas, nos colocam naquele tempo e naquele lugar. Sem aparente presença de personagens, apenas de figurantes num cenário de violência e caos entre as ruas da cidade. De resto, só depois de um raide policial a um bar clandestino e de uma atuação frustrada de uma banda emergente no mítico Fox Theatre (por onde passaram lendas da Motown), começamos a passar progressivamente do plano da multidão anónima para o das figuras a quem vamos dar nome e que dali em diante começamos a acompanhar. E é assim que chegamos ao Hotel Algiers e uma espiral de descontrolo e violência desencadeada por uma “brincadeira” que termina com a selvagem ação policial sobre um grupo maioritariamente constituído por negros, três deles acabando por ali conhecer a morte.
É ao chegar a este plano pessoal que Detroit ganha fulgor, desafiando-nos a refletir como como os factos são habitados por quem os protagoniza. E do ódio e brutalidade das agressões pelas forças da ordem ao desespero dos que esperam por justiça o filme respira um ofegante sentido de impotência que Bigelow nos serve de forma implacável e realista, usando de forma brilhante as tentativas de estar bem com “deus e o diabo” da personagem interpretada por John Boyega sem recorrer a um moralismo maniqueísta.
“Detroit”, de Kathryn Bigelow, com John Boyega, Will Poulter, Algee Smith e Jason Mitchell, está em exibição entre nós com distribuição pela NOS.
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