Um suave lamento
Texto: NUNO GALOPIM
Apesar da derrocada das barreiras entre os géneros musicais que caracterizou muita da actividade criativa dos últimos anos são ainda pouco frequentes os episódios em que essa livre circulação de informação atinge de facto mais vastos públicos além dos seus “nichos” habituais… Ou seja, não é frequente vermos uma obra assinada por um compositor dos nossos dias a merecer uma adesão tal que a coloque a par com os donos dos êxitos pop do momento na lista dos discos mais vendidos. Há compositores activos com enorme sucesso discográfico. Vejam-se um Philip Glass, um John Adams, um Arvo Pärt, um Michael Nyman… Mas nunca os seus discos (salvo ocasionais bandas sonoras, com a importante “boleia” do ecrã) se transformam em mais que aclamados episódios de culto para uma imensa minoria. Uma das excepções ao destino habitual da performance comercial de gravações em disco de obras da música contemporânea chegou, em inícios dos anos 90, com uma gravação, pela London Sinfonietta, dirigida por David Zinman e contando com a voz de Dawn Upshaw, da Sinfonia Nº 3 de Górecki…
Editado em 1992 pela Nonesuch (com um pormenor de uma foto de 1899 de Gertrude Käsebier na capa), o disco chegou ao nº 6 da tabela de vendas geral em Inglaterra. Liderou a tabela de música clássica da Billboard durante 38 semanas. Vendeu mais de um milhão de cópias… Um fenómeno inesperado, talvez, que colocou no firmamento das grandes obras do século XX uma meditação sobre a perda, a morte e a força da relação entre uma mãe e um filho.
O tempo juntou a essa outras gravações, fazendo desta uma obra que de facto cruzou públicos, gostos e gerações. E hoje vamos poder ouvi-la pelas 18.00 no Grande Auditório da Gulbenkian, em interpretação pela Orquestra Gulbenkian, dirigida por Joana Carneiro e com a voz de Elisabete Matos, num programa que inclui ainda Salve Regina de Eurico Carrapatoso e The Sun Danced de James MacMillan.
Henryk Góreki (1933-2010) foi um dos vultos maiores da música polaca do século XX. Nos anos 50 e 60 a sua música colocava-o em sintonia com os movimentos de vanguarda, mesmo contra as críticas do regime, que apontava muitas dessas manifestações como sendo “formalistas”. Em meados dos anos 70 os seus interesses tomaram outro rumo, claramente tonal, procurando um lugar de contemplação por vezes com um subtexto ligado a reflexões sobre a condição humana e a fé, reflectindo ainda uma curiosidade pelas noções de espaço com afinidade à dos minimalistas (o que o leva muitas vezes a ser associado a espaços semelhantes aos de Arvo Pärt ou John Tavener).
A Sinfonia Nº 3 surge em 1976, num tempo de transição para a tonalidade. Foi composta na sequência de uma série de estímulos, desde o encontro com um conjunto de canções folk do século XIX à descoberta de uma frase inscrita nas paredes de uma antiga cela da Gestapo, no Sul da Polónia, na qual uma rapariga de 18 anos pedia perdão por ali ter chegado e ajuda pelo que iria enfrentar. Como um lamento, a sinfonia é dominada pelas cordas que desenham uma lenta progressão feita de discretos módulos que se repetem. E por uma voz que entoa, além desta súplica registada numa parede em 1944, palavras de uma lamentação medieval e de uma canção folk da Silésia. Mais que uma simples evocação da dor da memória do Holocausto (e Górecki perdeu familiares em Auschwitz e Dachau), a sinfonia traduz sobretudo expressões de perda, de pesar, de mágoa. Uma elegia sem foco concreto, daí talvez a multiplicidade de interpretações que tem gerado. A citação de 1944, contudo, justifica a ligação que muitos encontram entre esta música e a memória desses dias sombrios.
Sem o aplauso dos que viam Górecki a afastar-se dos caminhos das vanguardas, a Sinfonia Nº3 conheceu opiniões em todos os sentidos. A sua primeira gravação data de 1978, na Polónia. Nos anos 80 começou a ser tocada no ocidente, ganhando enorme exposição pela sua utilização no filme Police (1985) de Maurice Pialat. O cinema voltou a escutá-la mais tarde em outros filmes como Fearless (1993) de Peter Weir ou Basquiat (1996, na foto), de Julian Schabel e, mais recentemente, em A Árvore da Vida (2010) de Terrence Malick. Em finais dos anos 90, os Lamb samplaram um excerto de uma gravação da sinfonia para construir Gorecki, um dos temas mais aclamados do seu álbum de estreia.
Imagens de uma transmissão na TV polaca de uma interpretação da “Sinfonia Nº 3”, com o compositor presente na sala.
Em jeito de montra, aqui ficam as capas de três recomendáveis edições em disco de gravações da Sinfonia Nº3 de Górecki:
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