Os filmes do DocLisboa 2018 (3)
Texto: NUNO GALOPIM
“Never stop – A Music that resists”
de Jacqueline Caux
Semanas depois de ter chegado às nossas cidades um olhar de Kathryn Bigelow sobre uma memória com meio século de vida de motins raciais que levaram Detroit aos cabeçalhos das notícias em 1967, um reencontro com outras histórias da mesma cidade chega-nos agora em Never stop – A Music that resists, um magnífico olhar autoral de Jacqueline Caux sobre as duas primeiras gerações de músicos que, longe dos universos da Motown (que o filme Detroit também tão bem evoca) colocaram aquela mesma capital de acontecimentos no mapa da história da música popular mais de uma década após aqueles mesmos acontecimentos.
Com raiz nos encantamentos e trabalhos pioneiros de três amigos e colegas de escola na Belleville High School – Kevin Saunderson, Juan Atkins e Derrick May – o “tecno” nasceu ali entre heranças colhidas entre pistas das eletrónicas dos setentas e um gosto pelos universos da ficção-científica. O filme escuta Atkins e May, a eles juntando depois entrevistas com Carl Craig e Jeff Mills, que surgem aqui como representantes da geração seguinte.
Jacqueline Caux observa como cada um associou a criação de uma editora independente ao seu trabalho como músicos e produtores. E, também, como o trabalho como DJ se associou cedo a este mesmo labor. Ao mesmo tempo cruza memórias de discos pioneiros das obras de todos eles a olhares sobre paisagens da cidade, por algumas não deixando de traduzir as carcaças de uma economia mais exuberante que outrora ali passou. Ao separar as entrevistas Jacqueline Caux sugere uma divisão do filme em quatro capítulos distintos. Mas as imagens da cidade, que os unem, juntamente com um discurso a quatro vozes, acaba por desenhar um panorama comum. A ver!
O filme passa dia 26 às 21.45 na Sala 3 do Cinema São Jorge e repete dia 28, pelas 22.00, na Sala Manoel de Oliveira.
“Marianne Faithfull, fleur d’âme”
de Sandrine Bonnaire
Não basta ter uma figura pela frente e a sua história para que se justifique um filme. Há alguns anos, numa das ocasiões em que falei com Marianne Faithfull, senti como o recordar das memórias estafadas dos anos 60, a vida com Mick Jagger, a etapa junkie nos setentas e outras mais vivências menos luminosas se tinham tornado para si um fardo não minimal, mas repetitivo, em entrevistas e mais entrevistas. E por isso, explicou-me, escreveu uma autobiografia onde conta tudo. Tentando também ali ser honesta, como o confessa uma vez mais em frente à câmara de Sandrine Bonnaire… Porém, salvo o instante dessa confissão e os momentos nos quais sentimos que a presença da câmara se torna incómoda para a cantora, tudo o resto que vemos neste documentário é um mais do mesmo que nada acrescenta às biografias tantas vezes já contadas de Marianne Faithfull.
O filme é afinal um banal era uma vez cronologicamente arrumado, que gasta mais de metade do tempo nos idos da swinging London, que tem o mérito de juntar muito bom arquivo (sem muitas vezes dizer do que se trata) e de estabelecer contrastes com o presente, mas que fora disso nada mais parece ter. Carece de um rumo, de uma ideia condutora… Afinal o que se conra? A biografia de fio a pavio? Então é pela rama que a coisa fica… Faltava ainda um grande documentário sobre Marianne Faithfull, é verdade. Mas claramente não este filme que vai ocupar esse lugar…
O filme repete dia 29, pelas 16.15, no Grande Auditório da Culturgest
“Whitney, Can I Be me”
de Nick Broomfield, Rudi Dolezal
A história por detrás da “princesa” pop que somou êxitos atrás de êxitos, sobretudo na segunda metade dos anos 80 e inícios dos anos 90. Na verdade há várias histórias e Whitney, Can I Be me, tem consciência da rede de factos e figuras que definiram uma história de vida na qual o brilho da voz e das luzes contrastava (e como!) do que acontecia mal a cantora saía de cena. Há a educação religiosa e uma relação “artística” com uma mãe, cantora de gospel, que viu a filha a filha a tomar-lhe os ensinamentos e ir aonde ela nunca fora capaz de chegar. Há a rapariga nascida no “bairro” (mas aqui parece que nada mais se diz além da constatação do facto). Há a criação de uma estrela pop para consumo mainstream (e branco) que contrastava com a rapariga que, depois, perguntou se poderia ser, afinal, ela mesma? Há uma relação afetiva (poderemos dizer amorosa?) com uma amiga de sempre, um casamento com um músico (Bobby Brown) e a difícil coexistência dos três num espaço comum e, mais tarde, a solidão. Há o consumo de drogas, que se apresenta como último refúgio… Poderiam ser talvez ingredientes a mais para uma só narrativa, pelo que se uns tomam a dada altura peso central na trama (sobretudo os de natureza afetiva e o uso de drogas), por outros a história teria de passar pela rama sem na verdade parecer dar-lhe interesse maior para além da sua enunciação. Convenhamos que ou faziam uma série ou não poderia ser de outra maneira…
O título, se provém diretamente de uma expressão dela mesma que se se escutou quando a cantora sentiu que não era ela quem estava no seu primeiro disco, traduzindo o desejo de poder encontrar espaço para a sua identidade artística, na verdade não deixa de sugerir o conflito emocional que a terá habitado, dividindo-a entre a figura de Robyn (que foi a sua mais próxima colaboradora durante anos a fio) e a mais pública relação com o marido Bobby Brown. O filme, a dada altura, parece então encaminhar-se para um debate sobre a difícil exposição pública de uma vida homossexual para uma mulher negra… E aí poderia ter ido um pouco mais fundo.
Se havia história(s) para contar a elas a realização não soube contudo nem dar forma verdadeiramente entusiasmante nem plasticamente interessante. Ao invés do ritmo impressionante de Amy, de Asif Kapadia, ou da abordagem artisticamente mais ambiciosa de Cobain: Montage of Heck, de Brett Morgen (apesar de dar também uso a vídeos caseiros), também eles sobre figuras que tragicamente nos deixaram cedo demais,Whitney, Can I Be me é relativamente pobre no uso do arquivo (sobretudo no plano musical) e usa vezes sem conta material captado durante a digressão mundial de 1999. E usa-o tantas vezes que quase parece às tantas um documentário feito para dar uso a esse material, ao qual depois se acrescenta a dimensão biográfica e os vários ganchos narrativos, para ir lançando entre novas visitas ao mesmo palco e bastidores (mesmo que em concertos diferentes). E não é o caso.
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