Obras inspiradas pela escrita de Philip K. Dick (4)
Seleção e textos: NUNO GALOPIM
Um dos mais lidos autores de ficção-científica (com grande parte da sua obra traduzida entre nós), Philip K. Dick é também um dos nomes deste género literário mais desejados pelo mundo do cinema, com vários dos seus contos ou romances já adaptados ao pequeno e ao grade ecrã.
Philip Kindred Dick nasceu a 16 de Dezembro de 1928 em Chicago (Illinois, EUA), mas cresceu e viveu sobretudo na Califórnia. Deixou os estudos universitários a meio e trabalhou numa loja de discos antes de começar a ganhar a vida vendendo histórias escritas por si. O interesse pela ficção-científica levou-o a corresponder-se com alguns especialistas em ciência e tecnologia, um dos quais de nacionalidade russa, o que lhe valeu ser alvo de investigação pelo FBI em finais dos anos 50.
A Califórnia surge como cenário recorrente em muitas das histórias de uma obra que antecipou temáticas e visões mais tarde comuns em terreno cyberpunk, debatendo quase todos os seus primeiros textos temáticas de foro sociológico e político, assuntos numa fase tardia trocados pelo protagonismo da teologia e de estados de alteração provocados pelo consumo de drogas, aqui reflectindo sobre experiências pessoais (como se lê em O Homem Duplo, título português de A Scanner Darkly, ou Valis).
A ideia de mundos paralelos ou realidades alternativas é também presença frequente em alguns textos. De resto, um dos seus mais importantes romances, The Man In The High Castle (entre nós publicado como O Homem do Castelo Alto), estabeleceu ligações entre a noção de história alternativa e o mundo da ficção científica. Em alguns livros chega a socorrer-se de dispositivos surrealistas para sugerir vidas em mundos de ilusão.
As temáticas da doença mental, sobretudo a esquizofrenia, dominam a etapa final da sua obra, escrita num tempo de progressiva manifestação de comportamentos paranóides. Um retrato complexo da sua mente e vida intelectual pode ler-se na excelente biografia de Emanuel Carrére, I Am Alive And You Are Dead: A Journey In The Mind of Philip K. Dick.
Aqui ficam dez exemplos de adaptações de textos seus a outras realidades:
“A Scanner Darkly” (2006)
filme de Richard Linklater
Apesar de projetada num futuro próximo, em cenário norte-americano distópico, num tempo em que cerca de vinte por cento da população vive dependente de uma droga – a “substância D” – a narrativa de ficção que Philip K. Dick nos deu a ler em O Homem Duplo (no original A Scanner Darkly) cruza-se na verdade com marcas de um discurso autobiográfico, sendo conhecido o relato de uma ex-companheira que lembra como a escrita e, em particular, a longa etapa de reescrita deste texto, lhe foi dolorosa. No início dos anos 70, depois de um novo episódio de separação, o escritor deu por si sozinho dentro de um casarão de quatro quartos. Chamou então para lhe fazer companhia um grupo de gente mais nova que viva na rua, como denominador entre todos estando o consumo de químicos, daqueles que não se vendem nas farmácias… Basta traçar paralelos entre este cenário real e o ambiente definido em torno da casa do protagonista de O Homem Duplo, para que as fronteiras entre os factos e a imaginação se revelem afinal bem turvas.
Publicado em 1977 (com um primeiro rascunho que data de 1973) O Homem Duplo apresenta-nos o quotidiano de um agente policial a quem é entregue uma missão nos bastidores do mundo do tráfico da “substância D”, o que o obriga a criar uma identidade fictícia que mantém a partir de então em paralelo com a real, às tantas dando por si perdido entre os dois mundos, acabando dependente da mesma substância e emocionalmente envolvido para além do que o plano de ação inicialmente desenhara. Paranoia, a vigilância, um ceticismo perante as forças da ordem e toda uma dimensão conspirativa maior (no plano económico) são temas que cruzam um livro que ocupa um lugar com considerável relevância nessa etapa da obra de Philip K. Dick.
Richard Linklater apresentou em 2006 uma abordagem visualmente estimulante à narrativa de Philip K. Dick, usando uma técnica de animação desenhada sobre imagens reais inicialmente filmadas (rotoscopia) que antes usara já em Waking Life, de 2001. Com nomes como os de Keanu Reeves, Robert Downey, Jr., Woody Harrelson e Winona Ryder no elenco, A Scanner Darkly teve estreia no Festival de Cannes mas acabou muito aquém do impacte desejado, não chegando sequer a receita global a cobrir os custos de produção.
“Blade Runner”
Filme de Ridley Scott (1982)
O ponto de partida foi Do Androids Dream of Electric Sheep?, um conto de Philip K. Dick, no qual o escritor procurara, acima de tudo, refletir sobre o que é, afinal, um ser humano. Numa espécie de projeção para uma Los Angeles futurista do desejo de ser gente que animou Pinóquio, Ridley Scott apresentou em Blade Runner a história de um tempo em que o homem criou réplicas de si mesmo para que estas executassem os seus trabalhos, sobretudo em colónias planetárias exteriores. Seres inteligentes, que nascem contudo com um tempo de vida finito e cuja convivência com os espaços reservados aos humanos não é permitida, havendo uma força policial que se dedica a localizar os que tentam fugir. No filme acompanhamos um Blade Runner (assim se chamam esses agentes), na sua missão que prevê o abate de um grupo de replicants que chegou à Terra (e que traz consigo, além do desejo de vida e humanidade, uma também tão humana sede de vingança contra quem assim os criou).
O que fez de Blade Runner um clássico maior do cinema de ficção científica não foi apenas o fulgor de uma narrativa que mostra de facto marcas do melhor da literatura do género (afinal o conto onde se baseia é apenas de um dos melhores autores de sci-fi) ou os trabalhos de composição das personagens (destacando naturalmente a figura de Deckard trabalhara por Harrison Ford, mas também a do replicant criado por Rutger Hauer). A banda sonora, de Vangelis, sugere um futuro assombrado. Mas abre portas ao passado… (rumo, afinal, a algo a que a art direction acabou por definir para a cidade que ali vemos).
A criação da visão desta Los Angeles do futuro é uma das peças fundamentais do filme. A cidade é lúgubre e chuvosa, eternamente movimentada mas no fundo profundamente solitária. Os edifícios evocam formas e tons que convocam memórias do film noir. Um filme projetado quarenta anos no futuro feito ao estilo de há quarenta anos atrás, como descreveu Scott Bukatman num livro sobre este filme. A visão de Ridley Scott, sobretudo pelo seu ritmo lento e caráter ambíguo na forma de apresentar o desfecho, gerou algum desconforto no estúdio e gerou a criação de uma versão “alternativa” para a estreia comercial. O tempo acabaria por eleger este como um filme de culto. E as suas várias versões estão todas elas hoje disponíveis em Blu Ray.
“Desafio Total”
Filme de Paul Verhoeven (1990)
O ponto de partida é um conto de Philip K. Dick, originalmente publicado em 1966 pela Magazine of Fantasy and Science Fiction. We Can Remember It For You Wholesale apresentava-nos a figura de Douglas Quaid, um homem que sonha com uma viagem a Marte que o ordenado não lhe permite fazer. Através dos serviços de uma empresa de experiências implantadas no cérebro projeta a materialização possível do desejo. Acaba contudo a entrar numa sucessão de situações revelações que o fazem retomar consciência do que era, afinal, a sua identidade real: a de um assassino de uma força policial marciana. O planeta vermelho é ali sobretudo o cenário que esconde essas memórias que estavam aparentemente apagadas, entre elas as de uma visita de invasores alienígenas que, inspirados pela bondade de Quaid, decidiram poupar a Terra enquanto este fosse vivo, o que fizera de si um dos maiores tesouros vivos da humanidade…
Quando, mais de duas décadas depois, Paul Verhoeven pegou no conto de Philip K. Dick para o levar ao cinema, centrou a atenção em alguns elementos da narrativa (que retoma na essência do que lança a figura de Quaid e a relação com memórias implantadas e apagadas) e amplificou o peso da presença marciana na história, apresentando-nos uma visão de um mundo dominado por um homem corrupto, que usa o uso dos sistemas de ventilação (que permitem a vida nas comunidades instaladas em domos ligados por túneis) como forma de exercer o poder. Quem ali domina o ar, manda.
Com Arnold Shwarzenegger no papel de Quaid e Sharon Stone como a mulher que as memórias entretanto implantadas ele julga que ali está desde sempre, Desafio Total – assim se chama Total Recall entre nós – cruza elementos da ficção científica com temperos de thriller para nos dar um dos raros exemplos em que Marte serviu de cenário a um filme de sucesso na bilheteira, muito antes do recente O Marciano de Ridley Scott, alertar para o filão que ali aguarda agora outras histórias. Quem o viu vai gostar de rever… E quem nunca passou por estas personagens, histórias e cenários, então é caso para dizer “get ready for a surprise”…
“The Man In The High Castle”
Série criada por Frank Spotnitz (desde 2015)
Estamos na América, em 1962. Os japoneses ocupam a costa do Pacífico, a Leste existindo um estado fantoche sob poder nazi. Hitler, agora doente, está retirado e, depois da morte de Borman, Goebbels é quem assumiu os destinos do Reich. O mar Mediterrâneo foi drenado para servir um programa agrícola. A população de África foi eliminada. A exploração de Marte está na mira dos alemães… E, algures numa cidade interior dos velhos EUA, um escritor criou uma ficção na qual alemães e japoneses perdem a guerra…
Este é o universo sobre o qual Philip K. Dick lançou personagens, através das quais nos vai revelando, aos poucos, uma visão aterradora que parte daquele equacionar de coordenadas quanto ao desfecho da II Guerra Mundial. E se?… Noções como o totalitarismo, hierarquias definidas entre conquistadores e conquistados, racismo, perseguição, habitam uma narrativa que tem entre os seus protagonistas um antiquário americano, um jovem casal japonês que reside em São Francisco (Califórnia), um veterano da guerra no Pacífico que esconde a sua identidade judaica ou um alemão que finge ser sueco e procura um encontro com os japoneses… .
Publicado em 1962 O Homem do Castelo Alto é hoje reconhecido como uma das referências maiores do universo literário da “história alternativa”. E, desde 2015, é também uma uma série baseada nesta narrativa que tem representado um dos maiores sucessos diretamente produzidos para a plataforma digital da Amazon, esperando-se uma terceira temporada de episódios em 2018. A série é uma criação de Frank Spotnitz, autor com importante ligação ao universo dos Ficheiros Secretos.
Conheces o Lágrimas na Chuva de Rosa Montero? É passado num mundo muito semelhante ao Blade Runner (uma inspiração / homenagem) e é das melhores coisas de ficção científica que li nos últimos tempos
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