Os contrastes de um autocrata
Texto: NUNO GALOPIM
A arte em tempo de regimes autocráticos vive como um pêndulo que acompanha o vaivém dos humores do grande líder. E na URSS de Estaline, a sua mordaça ora dava voz ora obrigava ao silêncio. Se a obra de Sergei Eisenstein já tinha experimentado vida conturbada face ao olhar interventivo do poder sobre a arte – quando, de regresso de uma etapa no Ocidente, viu o seu Prado Béjine subitamente obrigado a ficar por ali, sem ordem para ser concluído – ao mesmo tempo conhecera a aclamação quando, com Alexandre Nevsky (1938) apresentou uma visão de um herói do século XIII que transpirava naturalmente ecos para um presente no qual a ameaça germânica pairava sobre solo russo. Obrigado a retirar-se para uma zona segura quando os alemães (apesar do pacto assinado antes) invadiram solo russo, Eisenstein teria de esperar até ao início do recuo da wehrmacht para avançar com um projeto que começou por estimular Estaline dadas as afinidades que este sentia para com a figura que o filme iria retratar mas que, acabaria por mostrar quão instável e frágil era afinal o aplauso do líder.
A ideia de Eisenstein era fazer a evocação da figura de Ivan IV, o primeiro príncipe de Moscovo a ser coroado czar e cujo reinado não só unificou o grande espaço russo como definiu, pelo poder do autocrata, vias de evolução face aos modelos políticos e sociais medievais que até ali imperavam. Apoiado por Estaline, com ordem para que não se olhasse a custos (tendo contudo de esperar pela suavização dos gastos do esforço de guerra para poder avançar), Ivan, O Terrível foi idealizado como um épico a ser contado em três filmes. O primeiro recordaria a tomada de poder pelo czar (e a sua afirmação como autocrata vitorioso). O segundo focaria as grandes conspirações dos boiardos. E o terceiro retrataria as lutas finais de Ivan…
Estreada no Teatro Bolshoi em 1944, com um Estaline a aplaudir vivamente na sala, a primeira parte de Ivan, O Terrível revelava ser uma súmula do que o cinema de Eisenstein já dera a conhecer, explorando as feições dos rostos das personagens, a luz (e sobretudo as sombras, que desenham visões subliminares sobre as figuras que as geram) e um trabalho de composição que tem talvez a sua expressão máxima na sequência em que populares vindos de Moscovo, como pequenas formigas num ziguezague sobre o manto branco da neve, se aproximam do palácio rural onde o czar se afastara, pedindo-lhe o regresso à capital. As imagens, assim como a banda sonora criada (uma vez mais) por Prokofiev, juntavam-se a uma narrativa clara, arrumada, ciente de que havia um protagonista a seguir, mas atenta à construção de personagens ao seu redor, criando uma rede de relações e acontecimentos que sublinham afinal os passos daquele que a câmara contempla com admiração maior.
Quando chegou a segunda parte, que inclui outro espantoso exercício de composição na sequência passada na corte polaca, tudo mudou. A figura de Ivan evolui do autocrata em construção para o ser de contrastes e contradições, de amores e ódios, que na verdade correspondem ao Ivan real mas que, talvez de tão próximos com o grande líder Estaline, o levaram a vetar a exibição do filme, que assim ficou impossibilitado de ser mostrado publicamente, cancelando também a rodagem da terceira parte que, assim, ficou por fazer deixando o projeto incompleto. Esta parte dois só seria finalmente exibida em 1958, já depois da morte de Estaline e dez anos volvidos sobre o desaparecimento do próprio Eisenstein. Vê-la, hoje em dia, representa, além de um episódio de contemplação sobre um dos maiores filmes de todos os tempos, uma vitória sobre o poder dos autocratas (que, na verdade, a história e o tempo acabam sempre por derrotar).
“Ivan o Terrível”, de Sergei Eisenstein – Partes 1 (1944) e 2 (1958), com Nikolai Tcherkassov, Seraphina Birman, Ludmila Tzelikovskaya, Mikhail Nazvanov e Pavel Kadochnikov, passa amanhã, pelas 16.00 horas, no CCB.
A primeira parte tem 103 minutos de duração e a segunda, 80.
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