“Scary Monsters”: à porta dos anos 80
Texto: NUNO GALOPIM
A década de 70 tinha feito de David Bowie a mais presente, visionária e popular das figuras pop/rock de então. Do herói glam rock dos tempos de Ziggy Stardust e Aladdin Sane à sua reinvenção via rhythm’n’blues em Young Americans, da visão de modernidade (assimilando as revelações dos Kraftwerk e demais ensaístas alemães) em Station To Station à chamada “trilogia berlinense” que ajudou a inventar o som dos oitentas, a sua obra tinha assimilado pistas e traduzido uma versatilidade ímpar, assim como invulgares qualidades criativas. Os anos de Berlim, contudo, tinham-se revelado artisticamente mais consequentes do que comercialmente bem sucedidos. E, ao chegar aos oitentas, Bowie procurou a conciliação dos dois mundos, nascendo Scary Monsters como a perfeita soma de partes que, de facto, fez a diferença (e com resultados).
Depois de umas férias de neve na Suíça, com o filho, David Bowie voou para Nova Iorque em fevereiro de 1980. Duas semanas de primeiros trabalhos nos estúdios Power Station, com Tony Visconti novamente na produção, revelaram o compromisso de Bowie em registar um álbum claramente menos experimental do que os anteriores. O processo de construção das canções, que depois teve continuidade em Londres, mostrou igualmente uma vontade de fugir aos espaços de maior improvisação vocal e narrativa dos últimos quatro álbuns, revelando-se Scary Monsters o seu disco de canções mais meticulosamente elaboradas desde Young Americans, editado cinco anos antes.
Contando entre os parceiros de trabalho nomes como os de Robert Fripp e Pete Townshend, o álbum reflete um sentido de versatilidade considerável, demonstrando vontade em caminhar além dos princípios ensaiados na trilogia Low / Heroes /Lodger, contudo sem a renegar. De resto, este é claramente um álbum síntese do que então acontecera, um disco que congrega uma súmula de feitos e conquistas (sobretudo recrutando elementos na segunda metade de 70) e que, ao mesmo tempo, se mostra atento ao mundo em mudança e à nova década que se anunciava.
Eleito como “guru” pela emergente cena new romantic, David Bowie via o single de avanço do álbum, Ashes to Ashes, ser apontado como o cartão de entrada na nova década. Coube, todavia a Fashion, o papel de hino da nova geração de admiradores, com gosto trabalhado em sucessivas Bowie Nights que então se espalhavam, depois de Londres e Birmingham, um pouco por toda a Europa.
Editado em Setembro de 1980, o álbum revelou-se o disco comercialmente mais bem sucedido de Bowie desde Young Americans, tendo somado um número um em Inglaterra (Ashes To Ashes, cujo pierrot do teledisco de David Malett deu, depois, sugestão para a capa do próprio álbum).
Ashes To Ashes concentra as melhores ideias ensaiadas nos álbuns entre Station To Station e Lodger, propondo um encontro entre as estruturas clássicas da canção e a presença, marcante, de sons sintetizados com primeiro rosto. E, ao mesmo tempo, usa a nova arma dos seus discípulos, o teledisco, numa pequena obra de David Mallett que rapidamente mostrou como o antigo professor ainda era “o” mestre. A canção foi então a primeira sequela de Space Oddity (a segunda seria Hallo Spaceboy, 15 anos depois), aceitando assim a própria genética de Bowie como ponto de partida. Pode, de resto, ser visto, como uma autobiografia – encriptada claro – que explica como foi que ali se chegou. A letra é uma colagem de referências, do Major Tom de 1969 ao funk de 1975, do junkie de 1976 ao “action man” que pode bem ser uma referência à MainMan de DeFries… Os próprios acordes definidores da canção correspondem, explicou Bowie em 2003, aos primeiros que aprendeu a tocar na guitarra. A canção é globalmente reconhecida como um dos maiores clássicos de Bowie. E, mal foi editada em single, destronou os então imbatíveis Abba do primeiro lugar londrino.
Em outubro de 1980 o segundo single extraído do alinhamento de Scary Monsters destacou Fashion, aquele que foi o último tema trabalhado nas sessões desse disco e que de certa forma é herdeiro de uma linhagem que tem raiz numa relação com o funk que teve expressão maior em Young Americans. Com Scream Like a Baby no lado B, o single manteve Bowie sob atenções na Europa e representou o seu regresso a um patamar de maior visibilidade nos EUA.
Scary Monsters (and Super Creeps), uma das melhores canções do repertório de Bowie nos oitentas e uma criação em perfeita sintonia com o rumo dos acontecimentos pop/rock do seu tempo foi o terceiro single. Dominada por um trabalho de guitarra de Robert Fripp e por uma percussão sintetizada, a canção alcançaria um êxito mediano em janeiro de 1981 num single editado com Because You’re Young no lado B. Curiosamente é um dos raros singles de Bowie nos oitentas sem teledisco.
O quarto single esteve longe de ser uma aposta para o grande mercado. Editado a 45 rotações, com o instrumental Crystal Japan no lado B, Up The Hill Backwards foi um dos singles mais discretos e menos mediatizados de Bowie nos anos 80 e não teve também teledisco a acompanhá-lo. Lançado em março de 1981 teve uma muito discreta passagem pelas tabelas de vendas, não subindo acima do número 32 no Reino Unido. Nos EUA foi apenas lançado em formato de máxi-single.
Entre originais de Bowie, o disco inclui ainda uma versão de Kingdom Come, de Tom Verlaine. Se a esta juntarmos as palavras de abertura do disco, em japonês, por Michi Hirota, verificamos como, uma vez mais, Bowie conseguiu o feito de sedução do grande público, sem evitar trazer à sua música frestas menos pop(ulares) do seu gosto pessoal.
“Scary Monsters” integra o alinhamento da caixa antológica “A New Career in a New Town” recentemente editada pela Warner.
Republicou isto em O LADO ESCURO DA LUA.
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