O regresso de um veterano
Texto: NUNO GALOPIM
É um dos nomes de referência maior entre a geração que criou uma nova ideia de música pop made in France naquele período “difícil” em que os acontecimentos foram mais vividos entre o mundo francófono que pelo mundo fora, após uns sessentas e setentas cheios de episódios afirmação de grandes autores da canção e os noventas em que, sob a presença simultânea de nomes como os Air, Daft Punk e Etienne de Crécy, entre outros mais, o “toque” francês voltou a dar que falar pelo mundo fora. Juntamente com nomes como Les Rita Mitsouko ou Indochine, e de uma forma mais sólida e perene do que pontuais episódios de popularidade internacional, Etienne Daho definiu uma obra que, depois de primeiros episódios de exposição maior nos hoje míticos Tansmusicales de Rennes, chegou aos discos na alvorada dos oitentas, assinando em títulos como La Notte La Notte (1984) e Pop Satori (1986) expressões de busca de uma identidade que, seguindo os ecos do que em tempos fizera Françoise Hardy e, mais tarde, Serge Gainsbourg, procurava assimilar ecos da cultura pop/rock internacional em canções que não dispensavam a vontade de trabalhar, igualmente, uma personalidade francófona, comunicativa e atual. Cabe talvez a Paris Ailleurs (1991), disco instrumentalmente mais “convencional” do que nos mostrara em diálogos com as eletrónicas feitos antes (e também logo depois, em Éden e Corps et Armes, respetivamente de 1996 e 2000) o momento maior de uma discografia vasta que, na primeira metade dos anos 90, conheceu os momentos de maior exposição internacional, surgindo então uma (deliciosa) colaboração com os Saint Etienne num EP que editam em conjunto.
O relativo silêncio mediático que tem conhecido fora dos territórios francófonos desde a viragem do século não é sinónimo de inação. Os álbuns e digressões (mais os discos ao vivo) sucederam-se, assim como as ocasiões em que foi chamado a assinar duetos. Daho é um veterano respeitado da pop francesa. Uma referência maior que muitos, quer da sua geração ou das que vieram depois, fazem questão de citar, homenagear e saudar… E nós? Temos andado distraídos? Talvez um pouco. Mas na verdade os álbuns de estúdio que lançou depois de Corps et Armes (2000) – ou seja, Réévolution (2003), L’Invitation (2007) e Les Chansons de L’Inocence Retrouvée (2013) – ficaram aquém de feitos anteriores. Até que chega Blitz… E atenção que vale a pena voltar a dar atenção a este veterano.
O disco começou a ganhar forma num período em que Daho se mudou para Londres para aí trabalhar. Notou então que estava a viver na mesma rua na qual, em tempos, residira Syd Barrett… E chegou mesmo a pedir para passar uns minutos nesse espaço que fora outrora de alguém que há muito admira (basta andar no tempo para nos lembrarmos de uma versão de Arnold Layne que apresentou no lado B do máxi de Tombée Pour La France, em 1985). As memórias dos Pink Floyd dos dias de Syd Barrett, e de outras forças que então ajudaram a definir caminhos alternativos em espaço pop/rock acabaram por sugerir o rumo para um corpo de canções dominado tanto pela força das guitarras como por um sentido de teatralidade que a voz (sempre) suave e quente depois agarra como quem domina um jogo de contrastes. Blitz (título que traduz, como o faz a alma do álbum, a inquietude de quem assistiu ao “brexit”) é um disco intenso, de produção cuidada (que não deixa arestas descuidadas) e de alma clássica na escrita. Refrões que fogem às tendências do momento, ecos de finais dos sessentas, um belo corpo de canções com arranjos grandiosos e intensos e o reencontro com uma voz que parece iludir o tempo que passa fazem deste o melhor disco de Etienne Daho desde Paris, Ailleurs… E, como se não bastassem os argumentos, uma capa que pisca o olho ao clássico Scorpio Rising, de Kenneth Anger…
“Blitz”, de Etienne Daho, está disponível em CD e nas plataformas digitais numa edição da Wrasse Records. Uma versão em vinil chegará às lojas a 8 de dezembro. ★★★★
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