Hinos com 50 anos
Texto: NUNO GALOPIM
Na idade da comunicação global, sobretudo através da televisão (e em grande parte através de acontecimentos desportivos), os hinos nacionais dos mais diversos países tornaram-se assinaturas de povos e geografias, sendo mundialmente conhecidos. O escutar e reconhecer dessas notas define, por si só, uma identidade colectiva contemporânea, ligada ao mundo. Que ponto de partida melhor, então, para uma obra musical nascida, também ela, de ferramentas e tecnologias características dos mesmos sistemas que permitiram a criação da idade da comunicação?
Composto entre 1966 e 67, Hymnen corresponde à materialização de um desejo projecto de Karlheinz Stockhausen (1928-2007), que há já algum tempo refletia sobre como poderia compor uma obra de grande escala de música electro-acústica usando diversos hinos nacionais. O trabalho de concepção de Hymnen deu os primeiros passos em 1966 nos estúdios da WDR, tendo sido terminado em novembro de 1967. Teve então estreia a 30 de novembro de 1967 num concerto da série Musik der Zeit (da WDR) no auditório de uma escola em Colónia.
Na sua forma final, a versão original da obra apresentava-se em quatro “regiões”, com um total de 114 minutos de duração. Cada uma destas “regiões” toma um ou mais hinos nacionais por centro, através dos quais a composição estabelece jogos de afinidades com outros hinos, comparando frequentemente aí as primeiras frases de cada um. Desenham-se assim, mais que meros jogos geográficos, planos de afinidade histórica, política, social. No fundo, jogos de identidade cultural.
A região 1 tem por centros a Internacional e a Marselhesa (o hino nacional francês). Na segunda região encontramos quatro centros, estes sendo os da antiga República Federal da Alemanha, um grupo de hinos africanos (misturados e alternados pelas primeiras notas do hino russo). Na região três são também três os hinos, espaçados no evoluir da composição, sucedendo-se assim referências à URSS, EUA e Espanha. A quarta e última região toma dois centros por pólos, um sugerido pelo hino da Suíça, um outro desenhando uma utopia.
Originalmente Hymnen foi sugerida como uma obra sem forma definitiva, ou seja, uma experiência em aberto. O próprio Stockhausen afirmou, no prefácio da partitura, que “a ordem das secções características e a duração total [da obra] é variável. Dependendo dos requisitos dramáticos, certas regiões podem ser alongadas, umas acrescentadas ou omitidas”. Um ano depois, em 1968, Stockhausen retirava esta “cláusula”, fixando em definitivo Hymnen como uma obra de duração e número de regiões (quatro) não mutáveis.
Uma primeira gravação de Hymnen surgiu, em 1970, no catálogo da Deutsche Grammophon, num álbum duplo, incluindo as gravações efetuadas com o próprio Stockhausen nos estúdios da WDR. Com o tempo, o compositor realizou mais duas versões distintas desta obra. Uma segunda, em 1969, designada como Hymnen: Electronic and Concrete Music with solists. Também de 1969, mas apenas estreada em 1971, uma terceira versão apresentou-se como Hymnen: Electronic and Concrete Music with Solists and Orchestra. Em 1995, correspondendo ao volume 10 da discografia que lançou através da sua própria editora (a Stockhausen Verlag), um CD quádruplo juntou as versões original e a terceira desta que é uma das suas mais espantosas composições. O disco raramente é encontrado em discotecas, mas pode ser adquirido através da própria Stockhausen Verlag.
Juntamente com Gesang der Jünglinge ou Kontakte, Hymnen representa uma das mais importantes contribuições de Karlheinz Stockhausen para a história da música eletrónica, ultrapassando rapidamente as fronteiras dos espaços da música “erudita” e cativando atenções entre figuras da música popular. E vale a pena lembrar que, nesse mesmo 1967, o rosto de Stockhausen fora um entre os muitos que haviam figurado na capa de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, dos Beatles.