Uma luta feita com música (7)
Texto: NUNO GALOPIM
Foi por ocasião de uma jornada de apelo à luta contra a sida que surgiu o primeiro disco da Red + Hot Organization. Estávamos no final de uma década que viu nascer importantes movimentos ativistas – como o Act Up – que ajudaram a combater o imobilismo oficial face a uma doença que claramente alastrava sem o devido apoio para a investigação, tratamentos e campanhas de prevenção.
Já tinha havido um importante disco pensado para a recolha de fundos para ajudar a luta contra a doença e a investigação sobre o vírus VIH. Tratara-se de That’s What Friends Are For, um single conjunto de Dionne Warwick com Elton John, Stevie Wonder e Gladys Knight, lançado ainda em 1985. Mas foi com Red Hot + Blue que, em 1990 surge uma discografia focada na ideia de recolher fundos para este destino, gerando mesmo uma série de outros lançamentos locais em diversos países como, por exemplo, o francês Urgence, lançado em 1992 com objetivos semelhantes.
Com Cole Porter na berlinda, uma mão cheia de músicos criaram então versões de clássicos maiores da história da música norte-americana para, juntos, assinarem a primeira compilação pensada de raiz para uma campanha de recolha de fundos para programas de luta contra a sida. Coleção de 20 versões de canções de Cole Porter, Red Hot + Blue não só serviu o seu objectivo primordial como representou a definitiva inscrição nos hábitos (de produção e escuta) de uma ideia de álbum-tributo que entretanto gerou uma multidão de descendências. Unidos por uma causa comum, uma multidão de bandas e cantores nos mais diversos azimutes geográficos e artísticos encontra em Red Hot + Blue um patamar de encontro.
Neneh Cherry sugere caminhos para o clássico I’ve Got You Under My Skin através da assimilação de elementos da cultura hip hop (segundo opções mais próximas dos modelos então em vigor em Nova Iorque que dos que então praticava em solo britânico). David Byrne confirma o seu interesse por músicas de latitudes exteriores aos eixos pop/rock em Don’t Fence Me In. Iggy Pop junta-se a Debbie Harry para criar um hino eléctrico em Well Did You Evah. Annie Lennox atinge patamares maiores de emotividade na abordagem minimalista para voz e piano de Every Time We Say Goodbye. Os Les Negresses Vertes levam heranças parisienses a I Love Paris. Tom Waits veste muito ao seu jeito It’s All Right With Me. kd Lang é direta e pungente em So In Love. Os Erasure levam as electrónicas de travo pop a Too Darn Hot. Os U2 mostram, em Night + Day, primeiros sinais de uma transformação linguística em progresso na sua música (e da qual nasceria pouco depois o caminho que os levaria a Achtung Baby)… Podíamos continuar a descrição passando por nomes como os de Salif Keita, Neville Brothers, Jimmy Sommerville, Aztec Camera, Sinead O’Connor ou Fine Young Canibals que, entre outros mais, completam o alinhamento do álbum. Uns mais certeiros, outros menos consequentes. Mas entre todos uma ideia comum e, no fim, um dos mais sólidos e marcantes dos discos-tributo alguma vez registados. E um primeiro episódio numa história que, depois deste, somou já muitos outros títulos a uma obra ainda hoje dedicada à mesma causa.
Red Hot + Blue abriu a série de compilações editadas pela Red & Hot Organization, sempre sob os mesmos objectivos de recolha de fundos para campanhas de luta contra a sida. Depois deste disco foram editados outros títulos como Red Hot + Dance (1992, nas áreas da pop e da música de dança), No Alternative (1993, com nomes da cena indie da época), Red Hot + Cool: Stolen Moments (1995, dedicado a cruzamentos entre o jazz e novas formas de hip hop e suas vizinhanças), Red Hot + Rio (com dois volumes, um em 1996 e o outro em 2011, com diálogos com a música do Brasil), Red Hot + Lisbon: Onda Sonora (1998, com a cidade de Lisboa na berlinda), Red Hot + Rhapzody (1998, um tributo a George Gershwin) ou Dark Was The Night (2009, novamente entre a cena indie). Houve ainda outros discos focados em nomes como os de Fela Kuti, Duke Ellington, Johann Sebastian Bach ou Arthur Russell…
Essa história fica aqui recordada em dez canções, que aqui surgirão, uma a uma, ao longo dos próximos dias…
“I’ve Got You Under My Skin”, por Neneh Cherry
(Red Hot + Blue, 1990)
Foi o single de apresentação do álbum que lançou todo este projeto e um belíssimo exercício de reinvenção de um standard através da assimilação das linguagens do hip hop num tempo em que começava a ganhar visibilidade mainstream. Neneh Cherry junta à letra original da canção palavras que transformam a canção num manifesto. Fez-se ouvir. E ver, num teledisco assinado por Jean Baptiste Mondino.
“Too Funky”, George Michael
(Red Hot + Dance, 1992)
O segundo disco da Red + Hot Organization apontou os azimutes da sua atenção às pistas de dança e procurou chamar ao seu alinhamento remisturas por temas de artistas com grande visibilidade naquele tempo. George Michael optou contudo por oferecer três inéditos ao disco. Foram eles Do You Really Want to Know, Happy e Too Funky, este último acabando escolhido para ter então edição em single. Too Funky foi acompanhado por um teledisco no qual, além de uma breve presença de George Michael, vemos as modelos, Eva Herzigova, Linda Evangelista, Nadja Auermann, Emma Sjöberg, Estelle Hallyday, Shana Zadrick, Tyra Banks, Beverly Peele e Emma Balfour, as atrizes Julie Newmar e Rossy de Palma e ainda Joey Arias e Lypsinka.
“Glynis”, Smashing Pumpkins
(No Alternative, 1993)
Depois de um volume temático apontado às pistas de dança, o terceiro disco da Red + Hot Organization olhou para outro espaço importante sob a atenção do público mais jovem: a cultura indie. É que, apesar da recolha de fundos ser um dos objetivos destas campanhas, o passar de uma mensagem era igualmente visto como prioridade. No Alternative chama então nomes de peso do panorama “alternativo” que juntam às canções palavras de alerta, ora falando de proteção ora das políticas de saúde então aplicadas. Os Smashing Pumpkins, que nesse mesmo ano editavam Siamese Dream, alinham aqui com o belíssimo Glynis. E Billy Corgan deixou então uma analogia bem clara ao falar de prevenção, lembrando que, quando chove, usamos um chapéu de chuva…
“Un Ange en Danger”, MC Solaar + Ron Carter
(Stolen Moments – Red Hot + Cool, 1994)
Um dos espaços mais estimulantes que a música popular conheceu na primeira metade da década de 90 surgiu de encontros entre novos universos da música urbana e o jazz. O chamado jazz hip hop foi então um dos mais férteis territórios para esses encontros, com expressão em várias frentes criativas, entre as quais a que em França então afirmava uma ideia de rap cool. Ao criar um volume que juntasse o hip hop e o jazz a Red + Hot Organization não ignorou naturalmente esses ecos vindos de França e chamou a si a colaboração de MC Solaar, que então assinou aqui uma colaboração com o lendário contrabaixista Ron Carter.
“É Preciso Perdoar”, Cesária Évora, Caetano Veloso e Ryuichi Sakamoto
(Red Hot + Rio, 1996)
Os universos da lusofonia estão, curiosamente, entre os mais visitados pelos discos da série de lançamentos da Red + Hot Organization. O primeiro momento a traduzir esse encantamento surgiu em 1996 no primeiro de dois volumes editados sob a designação Red Hot + Rio. Ali surgiram inúmeros nomes de referência da música do Brasil (de Marisa Monte ou Bebel Gilberto a Gilberto Gil) em frequentes colaborações com figuras do firmamento pop/rock global como George Michael, David Byrne (um dos nomes mais recorrentes em discos desta série) os Stereolab ou os Everything But The Girl. Caetano Veloso é a voz brasileira que escutamos neste É Preciso Perdoar que aqui partilha com Cesária Évora e Ryuichi Sakamoto.
“Dreamworld: Marco de Canavezes”, Caetano Veloso e David Byrne
Dois “repetentes” no universo dos discos da Red + Hot Organization assinam o tema de abertura do disco que tomou a cidade de Lisboa como palco para mais um conjunto de encontros entre músicos com o objetivo de contribuir para uma causa comum. Mais do que traduzir uma ideia da cidade ao jeito de um bibelot turístico o álbum Onda Sonora: Red Hot + Lisbon procurou antes ser uma representação de uma multiculturalidade que tem a lusofonia como denominador comum.
“A Foggy Day In London Town”, David Bowie e Angelo Badalementi
Um dos modelos mais visitados pela Red + Hot Organization foi o do tributo a um autor em torno do qual se convocam vozes e músicos para promover novas abordagens às suas canções. George Gershwin foi um dos homenageados num álbum editado em 1998 no qual, entre outras versões e parcerias, surgia esta versão de A Foggy Day In London Town numa interpretação sublime de David Bowie, com arranjo orquestral de Angelo Badalamenti.
Para arrumar ideias, aqui fica a história dos discos que fazem estes 25 anos de atividade da Red + Hot Organization:
1990. Red Hot + Blue. Tributo a Cole Porter com a colaboração de nomes como os de Neneh Cherry, David Byrne, U2, Iggy Pop + Debbie Harry, Thompson Twins, Tom Waits, Annie Lennox ou Salif Keita, entre outros.
1992. Red Hot + Dance. Disco de música de dança ou remisturas dançáveis por nomes como os de Madonna, George Michael, EMF, PM Dawn, Young Disciples ou Crystal Waters, entre outros.
1994. No Alternative. Um olhar pelo panorama rock alternativo de inícios de 90, com colaborações dos Sonic Youth, Soundgarden, Smashing Pumpkins, Pavement, American Music Club ou Breeders, entre outros.
1994. Red Hot + Country. Músicos da country em campanha, com contribuições de Johnny Cash, Books & Dunn + Johnny Cãs, Nancy Griffith + Jimmy Webb ou Wilco + Syd Straw, entre outros.
1994. Stolen Moments: Red Hot + Cool. Em tempo de reencontro do jazz com a música popular, um verdadeiro manifesto jazz hip hop com parcerias como Donald Byrd + Guru e Ronny Jordan, MC Solaar + Don Cárter, Me’Shell + Herbie Hancock ou Roots + Roy Ayers, entre outras.
1995. Red Hot + Bothered. Um Segundo olhar sobre o panorama rock alternativo de 90 com Lisa Germano, The Verlaines, The Sea And Cake, Liquorice e Flying Nuns, entre outros.
1996.. Offbeat. Uma experiência spoken word com ambientes e trip hop, juntando Moby, Laika, My Bloody Valentine + Skylab, David Byrne, Barry Adamson e Soul Coughing, entre outros.
1996. America Is Dying Slowly. Artistas hip hop em campanha, com contribuições de De La Soul, Coolio, Pete Rock + The Lost Boyz ou Wu Tang Clan, entre outros.
1996. Red Hot + Rio. Um tributo à bossa nova, com as participações de Money Mark, Astrud Gilberto + George Michael, David Byrne + Marisa Monte, Everything But Thre Girl ou Cesária Évora + Caetano Veloso + Ryuichi Sakamoto, entre outros.
1997. Silencio = Muerte: Red Hot + Latin. Músicos latino-americanos em campanha, cm contribuições de Los Lobos, Café Tacuba + David Byrne, Juan Perro, Cibo Matto, Gegy Tah + King Changó, entre outros.
1998. Onda Sonora: Red Hot + Lisbon. Um tributo à lusofonia, com participações de David Byrne + Caetano Veloso, General D + Funk’N’Lata, k.d. lang, Paulo Bragança + Carlos Maria Trindade, Durutti Column e Bonga + Marisa Monte + Carlinhos Brown, entre outros.
1998. Red Hot + Rhapzody. Tributo a George Gershwin, com a colaboração de nomes como os de David Bowie, Morcheeba, Luscoius Jackson, Sarah Cracknell + Kid Loco, ou Money Mark, entre outros.
2000. Red Hot + Indigo. Tributo a Duke Ellington, com a colaboração de nomes como os de Terry Callier, Tortoise, The Roots, Les Nubiens e David Byrne, entre outros.
2002. Red Hot + Riot. Tributo a Fela Kuti, com a participação de D’Angelo, Jorge Ben Jor, Macy Gray, Femi Kuti, Nile Rodgers, Taj maha, Lenine, Manu Dibango, Me’Shell, Baaba Maal e Kelis, entre outros.
2009. Dark Was The Night. Sob produção conjunta de Bryce e Aaron Desner dos The National, um conjunto de contribuições vindas de terreno indie, com nomes como os Arcade Fire, Grizzly Bear, Sufjan Stevens, Yo La Tengo, Beirut, Dirty Projecters, Feist ou o Kronos Quartet.
2011. Red Hot + Rio 2. Segunda incursão brasileira, desta vez com as contribuições de Vanessa da Mata, Seu Jorg, Almaz, David Byrne, Bebel Gilberto, Marisa Monte, Caetano Veloso, Beck, Mia Doi Todd e John Legend.
2013. Red Hot + Fela. Um segundo tributo a Fela Kuti junta desta vez TUnE-yArDs, ?uestlove, Angelique Kidjo, Kyp Malone, Tunde Adebimpe, Kronos Quartet, Tony Allen, M1 ou Baloji.
2014. Red Hot + Bach. Pela primeira vez um nome da música clássica surge como figura central a definir a matéria prima a trabalhar. Participam, entre outros, Max Richter, Mia Doi Todd, Juliana Barwick, Carl Craig, Daniel Hope, o Kronos Quartet e as Amiina.
2014. Master Mix: Red Hot + Arthur Russell. Segundo disco editado em menos de um ano, é um tributo (com alinhamento que se estende ao longo de um duplo CD) onde colaboram nomes como os de Sufjan Stevens, Devendra Banhart, Richard Reed Parry, Hot Chip, Robyn, Scissor Sisters e Blood Orange.
Deixe uma Resposta