Quando o impossível… acontece
Texto: NUNO GALOPIM
Mal foram revelados os resultados da eleição presidencial norte-americana de 2016, ao mesmo tempo que o mundo, boquiaberto, assistia ao que parecia impossível, primeiros sinais de que nem toda a gente tinha desligado os neurónios surgiram em pequenos sinais. Um deles era a tabela de vendas da loja online Amazon que registava então uma subida espetacular de um romance publicado em 1935 mas que parecia ter ressonâncias particulares com o mundo real que então se desenhava à nossa frente. Assinado por Sinclair Lewis, escritor norte-americano que venceu o Nobel da Literatura em 1930, Isso Não Pode Acontecer Aqui (no original It Can’t Happen Here) revelava uma visão distópica sobre o futuro imediato dos EUA numa linha do tempo ficcionada na qual era um tal Berzelius “Buzz” Windrip e não Franklin Delano Roosevelt quem vencia as Presidenciais de 1936… A grande diferença, para além do discurso populista e demagógico deste Buzz Windrip ficcionado, é que a sua ascensão ao poder mergulhava os EUA numa ditadura que piscava o olho a características do regime nazi.
A supressão das liberdades (sobretudo a de expressão) e a entrada em cena de campos de concentração, de sistemas de repressão caucionados por tribunais com decisões feitas à la minuta (e ao jeito da nova ordem), o temor inspirado por uma força paramilitar (os Minute Men) ou a ascensão nas hierarquias dos partidários do regime, são apenas algumas das marcas de mudança numa história que acompanhamos através de um protagonista ligado aos media. Trata-se de Doremus Jessup, um liberal que tanto contesta o comunismo como o corporativismo e que assina editoriais num jornal local. Outrora respeitado na sua comunidade, Jessup será os nossos olhos nesse mundo que não queremos ver. As reviravoltas que a sua vida dá mal é confrontado pelo regime (e aqui não conto o que depois acontece, mesmo sendo este um romance dos anos 30) permitem-nos contemplar a extensão das mudanças vividas nos EUA uma vez transformados na ditadura (eleita pelo voto popular) que ninguém achava que ali pudesse um dia acontecer… Com ele acompanhamos depois a consequente expressão política nacional e internacional das mudanças que ali ganham forma.
As afinidades que muitos apontaram entre a figura real de Trump e o ficcionado Windrip (que nos anos 30 se dizia inspirado na figura de Huey Pierce Long Jr., que foi governador do Louisiana) foram referidas ainda nos tempos da campanha eleitoral, sublinhando sobretudo o estilo do discurso e o populismo que o sustentava (com diferença abissal entre o exibicionismo de riqueza milionária de um e o registo mais “uma casa portuguesa fica bem, pão e vinho sobre a mesa” do outro, get it?). É claro que não há Minute Men na América de Trump nem parece possível pensar que, alguma vez, as duas câmaras do Congresso se prostrariam a comportamentos despóticos de um líder eleito… Mas este é um livro que dá que pensar. Porque questiona aquilo que tomamos por garantido. E muitos tinham por “garantido” que alguém como Trump nunca chegaria a presidente… Pois pois…
A ficção que imagina o futuro, as realidades alternativas e ficções por esses planos do “e se…” não é uma arte divinatória. Mas a verdade é que já antecipou cenários e realidades… Do mundo vigiado do 1984 Orwell ao medo dos livros no Farenheit 451 de Bradbury, que é tão típico de qualquer poder despótico, não faltam exemplos de como a realidade acaba muitas vezes por materializar o que a imaginação temia… Este livro, de 1935, alertava sobre como a democracia pode abrir portas à sua própria mordaça… Um alerta, portanto.
“Isso Não Pode Acontecer Aqui”, de Sinclair Lewis (trad. José Roberto), é uma edição de 437 páginas pela D. Quixote
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