Os dez melhores livros de 2017 (Nº 1)
Estes foram os dez livros mais votados pela equipa da Máquina de Escrever. O método foi simples, pedindo a cada um que integra a equipa, independentemente das águas em que habitualmente navegue, que escolhesse as seus dez livros favoritas do ano, da soma das votações surgindo esta lista que agora aqui apresentamos.
1. “Deserto/Nuvem”, de Francisco Sousa Lobo
A ideia inicial era a de fazer uma reportagem, em banda desenhada, de uma semana passado junto da Cartuxa de Évora. Francisco Sousa Lobo, que ensina ilustração no Reino Unido e faz banda desenhada, tem uma casa ali perto e, durante alguns dias, entrou naquele lugar feito de silêncio, solidão e fé, falando com os dois monges (entre os seis que atualmente ali residem) que podem conversar. E dessas experiências nasceu o projeto original que, depois, sob sugestão do editor Marcos Farrajota (da Chili Com Carne), foi mais longe… A ideia inicial, todavia, ficou preservada em Deserto, uma das metades do split book que acabou por editar. Essa é então a etapa de descoberta por aquele que escuta e observa. Quase como um jornalista o faria, o que relaciona de certa forma esta experiência com um interesse pelos retratos do real que temos visto a surgir na melhor BD dos últimos tempos. Esta visita guiada reparte contudo as páginas de Deserto/Nuvem com uma outra face de um mesmo livro na qual se juntam cartas abertas que o autor endossou a um monge abstrato da Cartuxa (uma vez que sabia, à partida, que não teria respostas). Cartas nas quais lança questões sobre a fé ou a história das ordens religiosas, e pelas quais passam citações a autores como Leonard Cohen ou Adília Lopes e também uma referência (se bem que em Deserto) ao filme O Grande Silêncio, de Philip Gröning, que foi rodado na Grande Chartreuse, a casa-mãe da ordem dos cartuxos. O conjunto de olhares e reflexões inclui ainda retratos do quotidiano dos monges da ordem e um mapa que nos ajuda a saber onde tudo se passa. E dá-nos a mais fascinante experiência de leitura de banda desenhada deste ano. – Nuno Galopim
2. “O Homem Que Passeia”, de Jiro Taniguchi
Um dos maiores mestres do manga deixou-nos este ano. Jiro Taniguchi (1947-2017), que será possivelmente o autor japonês de banda desenhada que mais afinidades foi criando com os leitores europeus (foi sobretudo evidente a paixão com que o circuito franco-belga o acolheu, divulgou e influenciou), regressa aos escaparates das livrarias portuguesas com um dos seus títulos mais aclamados. Originalmente publicado no Japão em 1992 e mais tarde traduzido para francês como L’Homme Qui Marche, o livro que agora reencontramos em tradução portuguesa como O Homem Que Passeia faz de uma das mais habituais características das histórias de Taniguchi o seu eixo central: a caminhada. A queda de neve, os ruídos e rotinas da cidade, uma chuvada, um amanhecer, o calor tórrido numa tarde de verão, a compra de uma esteira e o seu transporte a casa ou uma incursão noturna por uma piscina são os pequenos nadas de que é feita a vida daquele que caminha por estas páginas. Um texto de Hermano Viana que precede a narrativa sublinha o sentido europeu da melancolia que passa por estes momentos e figuras, notando que esta história (tal como outras de Taniguchi) coloca a “interioridade” das personagens “à flor da pele”. A própria ideia do caminhante que observa, o errante – o flâneur – tem uma história literária com localização europeia em finais do século XIX com narrativas de figuras que deambulavam pelos boluevards de que, de certa forma, estas personagens de Taniguchi partilham heranças, devidamente recontextualizadas.
3. “A Estrada Subterrânea”, de Colson Whitehead
A expressão já existia e tem um valor histórico. O “underground railroad” não era contudo nem subterrâneo nem necessariamente envolvia uma via férrea. Era, de forma figurada (através dessa designação) uma linha de fuga, uma rede de caminhos através dos quais escravos tentavam escapar de plantações nos estados do sul e rumar ao lugares mais a norte no qual a liberdade e outro sentido de humanidade pudesse habitar os seus dias. É dessa expressão, e de uma história de fuga, que o escritor Colson Whitehead partiu para a escrita de um romance que lhe valeu já a conquista do Prémio Pulitzer para Ficção deste ano e que está destinado a conhecer uma adaptação ao pequeno ecrã (no formato de uma minissérie) tendo ao leme Barry Jenkins, o mesmo autor do brilhante Moonlight. A Estrada Subterrânea acompanha a figura de Cora, escrava que, acompanhada, foge de uma plantação de algodão na Georgia. O livro não se esgota contudo na trama feita de medo e tensão que Cora enfrente nas várias paragens pelas quais literalmente passa e pelo constante sentimento de insegurança com que vive cada dia, já que traduz de forma bem violenta os maus tratos, as punições, as vendas e separações, que faziam com que, mesmo residindo nas mesmas propriedades, ali houvesse habitantes de mundos distintos.
4.”Os Ignorantes”, de Étienne Davodeau
Ignorantes, sugere o título. Mas apenas das coisas um do outro, há que acrescentar. Um é autor de banda desenhada, com uma carreira reconhecida e uma série de títulos que têm mostrado sobretudo um gosto pelo registo documental (apesar de ter assinado também ficção). O outro é um viticultor da região do Loire, avesso à industrialização da produção, firme na sua relação com a terra e a vinha, em cujo cuidado (manual) diz que está o grosso do seu trabalho. Étienne Davodeau (o autor de BD) propôs então ao seu amigo viticultor Richard Leroy uma parceria. Ajudá-lo-ia durante um ano na sua vinha, ao mesmo tempo documentando num livro o que fosse acontecendo. Aprenderia assim o que pudesse dobre o trabalho de um viticultor. Em contrapartida apresentaria ao amigo o que pudesse sobre o universo da banda desenhada. Os Ignorantes conta-nos o que aconteceu. E mesmo não acabando nenhum deles por ficar especialista no métier do outro, a verdade é que ambos mergulham profundamente nos universos que aqui partilham. E nós, leitores, com eles fazemos o mesmo…
5. “Shenzheen – Uma Viagem à China”, de Guy Delisle
Mais do que um choque de culturas, o relato autobiográfico que Guy Delisle nos deu a ler em Pyongyang – Uma Viagem à Coreia do Norte revelou sobretudo o impacte de um choque de regimes. Confrontado com o quotidiano no país mais fechado do mundo, no qual não conheceu senão uma bolha autorizada aos estrangeiros que ali se deslocam em trabalho, o autor canadiano partiu da experiência que ali viveu por alguns meses num estúdio de animação para nos permitir uma fresta de curiosidade sobre um povo que parece viver numa dimensão alternativa na qual ou a propaganda é tremendamente eficaz ou então o medo tudo molda, não parecendo haver (visíveis, naturalmente) sinais de contestação ao poder e às narrativas que apresenta. Originalmente publicado em 2003, Pyongyang assinalou, há dois anos, o início de um relacionamento da Devir com este autor que, entretanto, se afastou da animação e ganhou visibilidade maior com graphic novels como as que traduzem experiências de reportagem – em Chroniques birmanes (2007) e Chroniques de Jérusalem (2011) – e, mais recentemente, relatando com um incrível sentido de expressão do tempo que passa, a história de um funcionário de uma ONG que viveu meses a fio sobre rapto em S’enfuir. Récit d’un otage (o seu mais recente livro, datado de 2016).
6. “Isso Não Pode Acontecer Aqui”, de Sinclair Lewis
Assinado por Sinclair Lewis, escritor norte-americano que venceu o Nobel da Literatura em 1930, Isso Não Pode Acontecer Aqui (no original It Can’t Happen Here) revelava uma visão distópica sobre o futuro imediato dos EUA numa linha do tempo ficcionada na qual era um tal Berzelius “Buzz” Windrip e não Franklin Delano Roosevelt quem vencia as Presidenciais de 1936… A grande diferença, para além do discurso populista e demagógico deste Buzz Windrip ficcionado, é que a sua ascensão ao poder mergulhava os EUA numa ditadura que piscava o olho a características do regime nazi. A ficção que imagina o futuro, as realidades alternativas e ficções por esses planos do “e se…” não é uma arte divinatória. Mas a verdade é que já antecipou cenários e realidades… Do mundo vigiado do 1984 Orwell ao medo dos livros no Farenheit 451 de Bradbury, que é tão típico de qualquer poder despótico, não faltam exemplos de como a realidade acaba muitas vezes por materializar o que a imaginação temia… Este livro, de 1935, alertava sobre como a democracia pode abrir portas à sua própria mordaça… Um alerta, portanto.
7. Integral Valérian
A integral das aventuras dos heróis criados por Pierre Christin e Jean-Claude Mézières em 1967 chegou este ano ao mercado nacional, numa série de lançamentos que incluiu alguns álbuns até aqui ainda inéditos entre nós. Valérian surgiu representado pela primeira vez em 1967 nas páginas da revista Pilote. Juntamente com Laureline completa uma ágil e bem humorada dupla de agentes espácio-temporais de Galaxty, a capital de uma grande confederação galáctica no século XXVIII. A bordo de uma pequena nave de serviço que é dotada de tecnologia que lhes permite caminhar rapidamente no espaço e no tempo, os dois agentes caminham de mundo em mundo, contactando com civilizações (umas já identificadas, outras desconhecidas) e procurando resolver focos de conflito, de desequilíbrio e, frequentemente, de injustiça, cientes de que a diversidade que habita o cosmos não permite aplicar as mesmas soluções em todos os lugares. Esta integral, lançada em tempo de chegada de uma adaptação deste universo ao cine,a, por Luc Besson, surgiu em edições duplas, juntando a cada semana dois álbuns sob uma nova capa comum na linha das que surgiram nas recentes edições de alma semelhante lançadas noutros países. Uma ilustração das respetivas capas originais precede, dentro de cada volume, as pranchas de cada um dos dois livros ali reunidos.
“Histórias do Bairro”, de Gabi Beltrán e Bartolomé Seguí
Histórias do Bairro é uma novela gráfica que nos transporta ao universo juvenil dos habitantes de ruas menos soalheiras de Palma de Maiorca nos anos 80. Memórias de descobertas e de desejos de fuga num dos grandes títulos publicados entre nós este ano. Histórias do Bairro é, mais do que uma só trama continuada, um conjunto de fragmentos de memórias. E é do seu conjunto que nasce o retrato. Tal como os amigos, da mesma idade, Gabi descobre por aqueles dias, entre aquelas esquinas, as drogas, os pequenos furtos, o sexo, toma consciência das diferenças sociais, de outros horizontes e encontra um refúgio mais pessoal entre os livros que vai lendo. Essas marcas habitam a história, tal como os ecos de Golden Brown dos Stranglers que “escutamos” na rádio numa noite em que resolvem guiar pelos campos perto da cidade um descapotável que não é seu ou a música de Miles Davis que Gabi escuta com uma amiga estrangeira, mais adiante.
“O Último dos Czares”, de Robert Service
Em março de 1917 Nicolau II abdicou. Foi o último czar russo, colocando então um ponto final a uma dinastia de 300 anos. Em julho de 1918, com apenas 78 dias passados numa casa em Ecaterimburgo na qual conhecia mais um episódio de um dia a dia passado sob vigilante detenção, o ex-monarca e os seus familiares foram assassinados, a meio da noite, na cave da Casa Ipatiev, a residência que os recebia (e que seria demolida em 1923). Este episódio representa o centro dos acontecimentos que, entre a narrativa do que sucedeu desde os instantes da abdicação e as consequências deste momento trágico, fazem as páginas de O Último dos Czares. Professor em Oxford e historiador da Rússia moderna e da URSS, Robert Service tem já publicados vários títulos sobre o século XX russo, assim como biografias de Lenine, Trotsky e de Estaline assina um livro que procura dar a conhecer a figura de Nicolau II, o contexto social e político do seu tempo e que observa com detalhe também o mapa de acontecimentos em torno da morte trágica da sua família.
“Y: O Último Homem”, de Brian K. Vaughan e Pia Guerra
(Levoir)
Uma das mais marcantes série de comics da primeira década do século Y: O Último Homem apresenta uma distopia de ficção científica que imagina o mundo depois de afetado por um acontecimento que matou todos os homens… menos um: Yorick (o protagonista), que assim se torna num ser “precioso”. Num mundo que entrou em caos depois de quase metade da população ter perecido em poucos instantes, numa espécie de genocídio sem aparente razão, que ninguém conseguiu nem explicar nem travar, as populações e as instituições reorganizaram-se de forma diferente. E é nesse mundo diferente, apenas habitado por mulheres, que toda a ação vai decorrer. Com o seu primeiro comic publicado em 2002, Y: The Last Man é uma criação conjunta do norte-americano Brian K. Vaughan (que foi argumentista e produtor da série Lost) e da canadiana Pia Guerra, a série desenvolveu-se ao longo de sessenta números que depois foram reunidos em álbuns.
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