O amor, segundo Luca Guadagnino
Texto: NUNO GALOPIM
Tilda Swinton tornou-se, numa fase da sua carreira, numa das presenças centrais na obra do realizador britânico Derek Jarman. Já depois da viragem do século, um outro cineasta ganhou um lugar destacado na carreira da actriz inglesa. Trata-se do italiano Luca Guadagnino, que, depois de The Protagonists (1999) e do documentário Tilda Swinton: The Love Factory (de 2002), a teve novamente como protagonista (e co-produtora) em Eu Sou o Amor (2009) e Mergulho Profundo (2015), tendo entretanto voltado a chamá-la para o remake de Suspiria (de Dario Argento), que está neste momento em pós-produção. Recordemos hoje o filme de 2009, o grande cartão de apresentação de Guadagnino ao circuito internacional e no qual Tilda Swinton veste a pele da matriarca, de ascendência russa, de uma família da alta burguesia milanesa na viragem do milénio.
Com heranças do cinema de Luchino Visconti ou de Douglas Sirk, esta é uma saga familiar com a figura de Emma Recchi (Tilda Swinton) como centro de gravidade, ao seu redor evoluindo a transição dos negócios da família do velho patriarca para o seu marido e filho primogénito, a libertação da filha (que em Londres vive abertamente uma relação homossexual) e o projecto da abertura de um restaurante nascido do entusiasmo de um dos seus filhos e de um grande amigo seu, um chef. Este último desperta em Emma um desejo que, de certa forma, representa a primeira pedra a cair num processo de derrocada iminente que vai ameaçar os pilares da tradição que suportam a família.
O argumento, assinado pelo próprio Guadagnino, com Barbara Alberti, vive na essência da magnitude que pode atingir um confronto entre a força revigorante do amor e a lógica ditada pela razão (que aqui suporta a tradição). A narrativa, assim como o trabalho dos actores (leia-se Tilda Swinton e competente leque de satélites), é a força que suporta o filme. O olhar, com gosto pelo detalhe, da câmara, a cuidada direcção artística e a música de John Adams (na verdade usando extractos de obras suas, entre as quais as óperas Nixon in China e The Death of Klinghoffer e outras obras de referência suas como Harmonielehre, Harmonium, The Chairman Dances ou Shaker Loops) conferem depois ao filme um valioso leque de valores acrescentados. A vivenda art déco onde vivem os Recchi é, mais que um simples cenário, um espaço vivo que molda as vidas e comportamentos que por ali circulam. As cores dos tecidos (seja nos estofos dos sofás seja nos vestidos das figuras femininas) é a fuga possível a uma ordem que traduz estabilidade antiga.
O desejo de liberdade que o amor desencadeia na figura protagonista entra em cena como uma ameaça à velha ordem que durante anos suportou a tradição dos Recchi. Com o fôlego dramático de uma ópera (e convenhamos que a música de John Adams ajuda), Eu Sou o Amor é um retrato pungente de uma mulher que recusa dizer não a si mesma. *
Versão editada e atualizada de um texto publicado no DN a 20 de maio de 2010.
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