Grão da melhor mó
Texto: NUNO GALOPIM
O desafio da criação tem destas coisas… Lança fulgores que se manifestam das mais variadas maneiras nos mais variados tempos. E aos 72 anos, de regresso aos discos de estúdio a solo sete anos após Mútuo Consentimento, Sérgio Godinho dá-nos a escutar aquela que é a sua melhore coleção de canções desde o incrível Domingo No Mundo, num disco no qual a novidade resulta não de uma mudança de modos de trabalho ou de opções estéticas, mas no apurar de ideias e caminhos já antes sugeridos e até mesmo percorridos, reafirmando o gosto pelo trabalho feito em colaboração com outros músicos. Nação Valente é um esforço coletivo. E se já no álbum de 2011 havia em cena a presença de outras “vozes” autorais na composição – Bernardo Sassetti, Francisca Cortesão e José Mário Branco – o novo disco reafirma mais ainda esse desejo pela partilha (que no campo da interpretação teve expressão maior em projetos como Afinidades, com os Clã, ou n’O Irmão do Meio, com inúmeros convidados) ao sugerir um momento de abertura às contaminações de um espaço e um tempo tal como, em inícios dos oitentas, o álbum Coincidências havia desenhado pontes suas com o Brasil. Nação Valente é um disco que escuta o Portugal de aqui e de agora, convocando à escrita das canções tanto nomes com os quais Sérgio Godinho já antes caminhara (José Mário Branco, Nuno Rafael, Hélder Gonçalves e David Fonseca) como figuras que consigo encetam aqui uma relação na composição (Pedro da Silva Martins, Márcia e Filipe Raposo). Das dez canções duas – Baralho de Cartas e Noites de Macau – têm música sua. As letras, como sempre, são todas de sua autoria… E aí o contraste curioso com Coincidências onde a presença de Chico Buarque (em Um Tempo Que Passou) se fazia com uma letra e não a composição.
É equívoco tratar o hiato entre Mútuo Consentimento e Nação Valente como um espaço em branco. Apesar de frequentemente habitado por presenças no palco, o tal fulgor da criatividade não fez silêncio, tendo-se manifestado ora na criação de dois espetáculos de parceria (um em volta de canções dos outros, outro em dupla com Jorge Palma), pelo caminho tendo surgido outro espaço de manifestação da palavra, pela escrita, na forma de livros, com a edição de um volume de contos e um primeiro romance (estando o segundo agendado para edição no outono).
É por isso entre uma ponte com ecos do trabalho vindos de discos anteriores e a continuação destes trabalhos mais recentes que se materializa um disco que tanto celebra a partilha criativa como a reafirmação de uma voz autoral em canções que, se por um lado, traduzem olhares sobre o presente, não deixam de ter em si formas de olhar o particular e o que está ao redor que são caras à escrita de Sérgio Godinho. E da criação de uma nova personagem (Mariana Pais), às crónicas de um presente nos que obriga muitos a uma vida de trabalho forçado (Noite e Dia), dos olhares sobre lugares e tempos (Nação Valente ou Noites de Macau) a narrativas que, afinal, têm outra história em si para lá do jogo de palavras (Tipo Contrafacção), estamos afinal perante um álbum profundamente enraizado nos mais firmes terrenos da obra de Sérgio Godinho.
Cabe à música o papel de sublinhar então os valores do tempo em que nasce. E se na composição as contribuições são variadas e de horizontes abertos, na hora de pensar as formas finais das canções os arranjos definiram uma personalidade de “banda” firme e definida, diferente das opções seguidas nos seus últimos discos, aberta a pontuais desvios (cordas em Mariana Pais, 21 Anos e Noite e Dia, metais em Tipo Contrafacção) mas buscando uma lógica coesa, direcionada (sugerindo aí uma estratégia de contraste face às opções de Domingo no Mundo).
No fim temos um disco fresco, viçoso, vibrante e a pedir vida de palco (que chega já a seguir… até já, até já…). Foram sete anos de espera. O bom artesanato faz-se assim!
“Nação Valente”, de Sérgio Godinho, está disponível em CD e nas plataformas digitais, numa edição da Universal. Uma edição em vinil chegará mais adiante. ★★★★★
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