A arte na era dos factos alternativos
Texto: NUNO GALOPIM
Se a arte reflete os ecos do seu tempo, então não há melhor expressão para a era dos “factos alternativos” do que a exposição que Damien Hirst apresentou em 2017 entre as salas de dois palácios venezianos. Não havia quem meses antes o imaginasse, muito menos o próprio Hirst que mergulhara nesta ideia há já alguns anos, representando 2017 o ano em que desta sua criação emergiu, Mas quando, pouco depois da tomada de posse de Donald Trump, a sua conselheira Kellyanne Conway, justificou os números (equívocos) dados oficialmente pelo então porta-voz da Casa Branca, Sam Spicer, como sendo “factos alternativos” quando confrontados com a verdade, a ideia estava lançada: quem quiser que acredite… E foi, curiosamente, esse o mesmo motor por detrás da ideia que Damien Hirst procurou materializar nesta sua mais recente exposição.
Chamou-lhe Treasures From The Wreck of The Unbelievable e não era mais senão a apresentação de um conjunto de supostos achados numa campanha arqueológica que trouxera novamente à nota na água objetos – alguns de grandes dimensões – que supostamente teriam naufragado no tempo dos romanos. O navio, o Apistos (ou seja, o “inacreditável”) levaria a bordo tesouros adquiridos por Cif Amotan II, um antigo escravo (que conquistara a liberdade) e que iriam integrar a construção de um templo.
A exposição em Veneza, Palazzo Grassi e no Punta Della Dogana, representou uma das faces de um projeto que levou dez anos a conceber e a materializar. Uma outra está agora disponível via Netflix na forma de Treasures From The Wreck of The Unbelievable, um filme de Sam Hobkinson que sublinha a ficção que se conta. Trata-se, por isso, de um “mockumentary”, ou seja, um falso documentário. Ou, se preferirem, uma ficção que usa a linguagem do cinema documental. Seguindo as pistas habituais em programas televisivos sobre descobertas arqueológicas submarinas, o filme começa por nos apresentar protagonistas das campanhas (muitos deles são atores), fazendo de Hirst o “mecenas” que resolve dar a mão a uma missão sem fundos.
Acompanhamos depois situações que, entre sequências a bordo do navio e outras captadas por mergulhadores, nos vão relatando, a par e passo, a progressiva descoberta do tesouro afundado. Pelo caminho há planos com entrevistas, a de Hisrs acabando, nas entrelinhas, de lançar o discurso que sustenta esta criação. O filme, narrativamente bem estruturado e tecnicamente competente, termina com imagens das exposições, sublinhando o tom de provocação que habita a alma desta criação ao mostrar imagens de uma figura retirada entre as demais peças afundadas com a forma de, nada mais, nada menos, que o rato Mickey. No fim, acredite quem quiser…
“Treasures From the Wreck of the Unbelivable”, de Sam Hobkinson, está disponível no Netflix.
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