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Realismo, palavra maldita

Texto: JOSÉ RAPOSO

Em “Lucky”, de John Carroll Lynch, Harry Dean Stanton dá corpo a uma interpretação em tons de despedida, ou não tivesse sido este um dos seus últimos filmes. A Alambique acaba de o lançar em DVD no mercado nacional.

Podemos mesmo começar pelo fim, porque aquilo que Lucky nos vem dizer é mesmo sobre isso: uma meditação em forma de filme, que tem como pano de fundo esse confronto inevitável com a solidão dos últimos dias. O peso do quotidiano ressequido à força da brasa do deserto, esse horizonte solar tão cinematográfico onde a história do cinema está sempre à espreita, acaba mesmo por derrocar naquela que é uma das sequências mais comoventes do cinema dos últimos anos. No bar do costume (não podia ser noutro sítio), Harry Dean Stanton, num monólogo em abismo inclinado sobre a incógnita da verdade e o sentido mais profundo da realidade, não nos diz outra coisa senão isto: daqui não levam nada. O fim pode muito bem ser assim, como num poema de T.S. Eliot – not with a bang but with a whimper.

Lucky (editado em DVD no início do mês pela mão da Alambique), é um filme inseparável do seu ator, uma presença regular no cinema de David Lynch (que também aqui marca presença num papel secundário, numa interpretação com um justo fulgor absurdo), com uma carreira longa e acentuadamente diversificada – do Ridley Scott de Alien – o Oitavo Passageiro, ao Scorsese de A Última Tentação de Cristo, mas também com passagem pelo Wise Blood de John Huston, entre tantos tantos outros – e que será sobretudo recordado pela sua interpretação em Paris, Texas de Wim Wenders, filme de onde já nos parecia olhar do lado inverso do espelho. Harry Dean Stanton dá corpo a uma interpretação em tons de despedida, ou não tivesse sido este um dos seus últimos filmes. Falecido em setembro do ano passado, a sua presença num filme dedicado à poesia do abandono transporta consigo uma interrogação dolorosa, capaz de atirar a placidez daquilo que se vê a olho nu numa desordem paralisante: é esta a nossa vida?

Filme de estreia na realização de John Carroll Lynch – já o conhecíamos de outras paragens, mas enquanto ator: em Fargo dos irmãos Cohen, ou Zodiac, de David Fincher, só para citar os exemplos porventura mais mediáticos – Lucky faz o retrato de uma forma de viver no despudor da margem, mas sempre à procura da imensidão do universo em cada esquina. Ou em cada grão de areia. É um filme construído à volta das rotinas do seu protagonista, e é também por isso um mapa com uma escala muito humana: perante a eternidade, mais uma margarita. É o tipo de renegação radical que faz de Stanton uma espécie de anjo exilado – um pé no deserto, outro no infinito.

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