Nas traseiras do sonho americano
Texto: JOSÉ RAPOSO
Não foi longa a espera para o regresso de Sean Baker, realizador do celebrado Tangerine, esse filme apaixonadíssimo pela vida desenfreada na cidade em movimento, uma obra fulgurante que também era uma carta de amor ao ensemble de actores não profissionais que então corporizava uma forma de estar sobre o mundo. Filmado num iPhone (decisão que acabou por animar uma certa “querela crítica”), Tangerine respirava muito dessa liberdade que é filmar uma metrópole como Los Angeles a partir do mais particular dos detalhes. Era um contraste que se fazia sentir a cada momento, a demonstrar que o (novo?) cinema independente americano continuava a ser capaz de renovação – fazer cinema com um dispositivo de gravação pessoal, numa cidade que reflete o que de mais impessoal há no mundo contemporâneo, em permanente fascínio pelas circunstâncias mais especificas e concretas das vidas vividas na margem. The Florida Project é o retorno de Baker à película, e essa inversão de escala faz eco de uma nova agitação no seu cinema, desde logo na forma de se relacionar com a cidade: em vez da agitação urbana de Tangerine, o centro do universo é agora um motel muito pitoresco, todo ele pintado com tons purpura, localizado à beira da estrada. É muito literalmente um “Magic Castle”, habitado por famílias desfavorecidas, esquecidas ou traídas pela miragem do “american way of life”. Na linguagem de Baker, dir-se-ia que vivem nas traseiras do sonho americano – por certo, não será por acaso que é logo ali ao lado que se encontra o parque de diversões da Walt Disney, essa fachada imponente da imaginação popular.
Em certa medida, esta dança de Baker à volta dos contornos da contemporaneidade continua a ser dos traços mais marcantes do seu cinema. Embora transporte consigo uma ambiência muito específica, um ritmo em tudo sincronizado com os locais em que situa os seus filmes, o que é certo é que essa autenticidade surge frequentemente cruzada pelo espectro do mito. Não é que a história de The Florida Project seja contada a partir de um ponto de vista universal, mas não deixa de ser notável a forma como a sua encenação ilumina esse espaço de liberdade que é a infância tonta, moldando-a numa espécie de arquétipo utópico com a aparência da surpresa do quotidiano. É a força desse quotidiano inesgotável que mais impressiona, numa história focada nas peripécias das crianças que habitam aquele “castelo”. Mas é também um mundo pejado de vidas traçadas pelo destino mais cruel.
Nunca chegam verdadeiramente a entrar pela trama dentro, mas o ruído de fundo das histórias das suas vidas não deixa de provocar algum desconforto: é através de Moonee (Brooklynn Prince), uma criança de seis anos que vive com a sua mãe solteira e desempregada, Halley (interpretada pela estreante Bria Vinaite, que a acreditar no que reza a história foi “descoberta” meio ao acaso no Instagram), que esse lado mais oculto do motel ameaça perturbar a algazarra foliona e reinante com que se atiram à realidade. Numa breve tour pelo motel que Moonee dá a uma criança que mora nas vizinhanças, um pouco como quem dá a ver os cantos da casa, o retrato dos moradores é uma imagem do desgosto: num dos quartos vive um homem que “esteve na guerra e que bebe muito”, noutro ao lado há uma senhora que pensa estar “casada com Jesus”. Chega a ser desarmante o desapego com que a pequena Moonee se refere à desgraça dos outros, mas é esse um dos seus traços fundamentais – uma vontade de viver num estado de deslumbramento perante a vida como ela é, e é também isso que a torna num personagem comovente. É uma interpretação inesquecível da jovem Brooklynn, bem capaz de a colocar num panteão onde figuram nomes como Antoine Doinel (o de Os 400 Golpes), ou o pequeno Joey de Little Fugitive, obra maior do New American Cinema.
Baker é um exímio diretor de atores, qualidade admirável numa encenação que reúne atores não profissionais com nomes mais experientes. Como presença tutelar, para não dizer mesmo parental, surge-nos um Willem Dafoe no papel do carismático Bobby, o gerente do motel a mais das vezes chateado ou à beira de um ataque de nervos, constantemente ocupado com as tarefas de manutenção, mas também ele disponível em lidar com o mundo conforme a mão que as cartas lhe trouxeram. A performance já lhe valeu nomeações tanto para os Globos de Ouro, quer para os Oscars que se avizinham, e serve de contraponto à desordem muito precária do universo de Moonee e Halley. Baker nunca se demora muito em problematizar as contradições ideológicas que lançam os seus protagonistas para a margem da sociedade, mas no seu horizonte encontramos sempre a sombra da ordem política e económica do mundo.
Halley – ou, como bem apetece dizer, “American Halley” – acaba por se envolver num sem número de esquemas mais ou menos retorcidos, mais ou menos ilegais, para poder pagar a renda e arranjar comida que sirva de sustento a si e à filha: da venda de perfumes à beira da estrada, a arranjos com a amiga empregada de mesa de um restaurante, as estratégias de sobrevivência são obrigatoriamente imaginativas.
No imaginário de Baker, a fronteira entre realidade e imaginação é por vezes ténue, não no sentido mais fantasioso que essa fricção noutras ocasiões costuma configurar, mas sobretudo enquanto consequência de uma direção de fotografia a todos os títulos notável (a cargo de Alexis Zabé), e que frequentemente privilegia aquele que supomos ser o ponto de vista das crianças. É uma fotografia iluminada por um encantamento muito próprio da idade, e o efeito dessa imersão no imaginário infantil faz de The Florida Project o filme mais conseguido até à data de Sean Baker.
“The Florida Project”, de Sean Baker, com Willem Dafoe, Brooklynn Prince, Bria Vinaite, Valeria Cotto, Christopher Rivera e Caleb Landry Jones, está em exibição em Portugal
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