Um dos tesouros mais bem guardados do cinema dos anos 70
Texto: JOSÉ RAPOSO
Será um dos tesouros mais bem guardados do cinema dos anos 1970: uma história ambientada em Nova-Iorque, essa neurose contemporânea em forma de cidade, filmada com um olhar documental e minucioso, com uma sensibilidade e disponibilidade para as relações humanas que se desenvolvem e respiram no espaço precioso da intimidade. No contexto do cinema da década é um filme de alguma singularidade: realizado por uma mulher, Claudia Weill, que aqui se estreou na longa-metragem (oriunda do documentário, campo onde ganhou notoriedade, não teve uma carreira no cinema particularmente extensa – para além deste Girlfriends realizou apenas mais uma longa, que juntava Michael Douglas e Jill Clayburh numa narrativa à volta das tensões entre casamento e carreira), Girlfriends conta-nos a história de Susan e Anne, duas amigas que partilham casa e que tentam construir as suas vidas de forma autónoma e independente. Weill é imensa na forma como se debruça sobre a natureza complexa da amizade. Situando o enredo num arco temporal relativamente curto, traça uma ampla perspectiva desse conflituoso processo de cristalização da identidade pessoal à luz do mais sincero dos desejos – no caso de Anne o casamento e a vida em família; uma carreira artística centrada no universo da fotografia no caso de Susan.
Um dos aspectos mais vincados e aplaudidos do filme está no cruzamento entre esses anseios mais ou menos profundos e sentidos, e as expectativas próprias da idade – pejadas de desilusões, passos em falso, enfim, de tropeções a caminho da maturidade. E isto com o espírito de uma época e de um local sempre presentes. Mais do que problematizar o casamento enquanto “instituição” ou de analisar em profundidade a precariedade do artista em começo de carreira – é certo que a lente de Weill também acaba por tocar nestas questões, mas estas acabam por surgir num plano relativamente secundário – Weill procura centrar a história nas marcas que as decisões da vida pessoal de cada uma deixam invariavelmente na amizade. O enredo, aliás episódico e fragmentado, começa justamente a ganhar forma com o confronto de Susan perante uma vida mais solitária e desamparada, após a decisão tomada por Anne em ir viver com o seu futuro marido.
Se tudo isto, passados mais de 30 anos desde a estreia, nos parece vagamente familiar, tal deve-se em larga medida ao grau de influência que a obra foi capaz de exercer ao longo dos tempos, tendo atraído personalidades como Lena Dunham, a criadora e uma das protagonistas da série Girls, que não só lhe reconheceu um papel importante no desenho do seu próprio imaginário, como acabou mesmo por convidar Weill para a realização de um episódio da série; ou Greta Gerwig, realizadora de um Lady Bird (ainda em exibição em sala) que parece fazer algum eco do filme de Weill na forma como olha para a amizade de duas adolescentes – a mesma Gerwig que de Girlfriends, numa edição da revista Sight & Sound dedicada a mulheres realizadoras, afirmava ter ficado com a sensação de ser um filme realizado só para ela.
“Girlfriends” está disponível em DVD em edição pela Warner Archive Collection.
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