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A força muito atual de Vergílio Ferreira

Texto: JOSÉ RAPOSO

Fernando Vendrell regressa à realização com “Aparição”, filme que coloca a obra do escritor num diálogo com as questões do nosso tempo, uma época perturbada pela relação instável entre a representação mediática do mundo e a ordem política e cultural.

A adaptação para cinema de uma das obras mais celebradas da literatura portuguesa, Aparição, de Vergílio Ferreira, obra originalmente publicada em 1959, transporta consigo um certo prazer pela desordem do mundo, esse jogo lúdico do desarranjo da superfície das aparências que é o exercício livre da linguagem – e do pensamento. Trazer a obra de Vergílio Ferreira para o cinema em 2018, é também colocá-la em diálogo com as questões do nosso tempo, uma época perturbada pela relação instável entre a representação mediática do mundo e a ordem política e cultural em que vivemos. É certo que o filme não vai muito além do imaginário de Vergílio Ferreira, mas é justamente pela forma como cristaliza esse passado já distante, que nos dá liberdade em convocar para este nosso presente o que de mais abstrato existe na obra do escritor. Se não é uma adaptação particularmente saliente no plano estritamente cinematográfico, coloca em primeiro plano a força muito atual da obra de Ferreira.

Realizado por Fernando Vendrell (num regresso à realização após uma ausência significativamente longa, cerca de uma década), o filme segue de perto o romance homónimo, acompanhando a chegada de Alberto Soares, um jovem professor de liceu, a uma Évora em finais dos anos 1950. Soares (interpretado por Jaime Freitas, num papel absolutamente irrepreensível) carrega uma vida interior assolada por uma inquietação existencial, que procura colocar ao serviço daquilo que o próprio designa por “pedagogia da educação”. Esse projecto, “político” e “existencialista” – se é que se pode olhar a questão a partir desta perspectiva – acaba por motivar a resistência e oposição do poder instituído, nomeadamente do reitor da escola que a dada altura se irá opor aos exercícios mais criativos de Soares – estamos, bem vistas as coisas, em pleno Portugal de Salazar, numa Évora onde “não se pode ter mais do que a quarta classe nem menos de 300 porcos”. Uma frase absolutamente lapidar, capaz de traduzir o espirito de uma época com a precisão de um trovão.

O filme acaba por olhar para a vida de Soares a partir de vários ângulos, debruçando-se sobre as inquietações próprias das relações pessoais que vai estabelecendo, mas também nas questões que lhe despertam as atividades de professor e escritor. No limite, está também em causa o retrato do individuo enquanto ser intelectual, um retrato onde a fixação de uma identidade pessoal parece estar intimamente ligada com a afirmação do pensamento. Logo numa das primeiras aulas Soares transmite uma ideia que dá que pensar: “o que interessa é vocês tornarem-se autores do vosso próprio ponto de vista, criarem um olhar vosso” – eis uma noção que (também) evoca o cinema e a sua relação com o mundo. Vendrell dá assim vida a uma Évora a vários títulos provinciana, muito cinzenta, num trabalho de reconstrução histórica bastante competente, acabando por colocar em cena o inevitável confronto entre o tumulto interiorizado e “subterrâneo” do professor, e a presença sedutora de Sofia (com interpretação de Victoria Guerra), uma das filhas de um médico local.

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